sábado, janeiro 05, 2008

MEU ENCONTRO COM "A BESTA DOS PINHEIRAIS"

O "Polaco" diante do quartel-general no bairro do Pilarzinho

Cruzamos pessoas todos os dias, embora alguns encontros, com a marca do acaso, têm a força de mudar nossas vidas de modos insuspeitos. Em 1982, com 17 anos, eu cursava o primeiro ano de Jornalismo na Universidade Estadual de Londrina. Apaixonado por poesia, respirava nos corredores da UEL um ambiente de muita criatividade e rebeldia. Eu havia ouvido falar de Leminski ainda na 8a. série e lido alguns poemas seus em jornais e antologias. Uma matéria que saiu na Veja, mostrando a figura, de bigode e violão, parecendo um poeta polonês perdido no século 20, na escada de sua casa no bairro do Pilarzinho, atiçou minha vontade de conhecê-lo pessoalmente.
Certo dia, no início de 82, caiu em minhas mãos um exemplar do Não Fosse Isso. O livro, branco e quadradão, com tipografia à cummings, bateu na hora. Emprestei o livro para sempre e passei os próximos dias devorando-o. A leitura do livro deu a senha para todas as minhas inquietações poéticas da época: como achar uma terceira via entre o rigor de linguagem e o leque de repertório oferecido por Pound e pelos irmãos Campos sem, contudo, abrir mão da espontaneidade e visceralidade da poesia marginal. A resposta estava ali, pós-concreta, pós-marginal, na minha frente, na carne de seus poemas. Absolutamente maravilhado com o livro, parti para a leitura do enlouquecedor e ilegível Catatau. Em julho parti para Curitiba, com a desculpa de fazer uma entrevista com ele para um fictício jornal laboratório.
Na capital, sem nenhuma idéia de como conseguir o telefone da “besta dos pinheirais”, fui passear no calçadão da XV. Entrei na Livraria Gighnone. Depois de folhear alguns livros e lançamentos, já quase ganhando a rua, uma voz alguns decibéis acima do normal, de um sotaque curitibano fortíssimo, chamou minha atenção. Olhei e não acreditei: era Leminski, ali, em carne e osso, indignado com os funcionários por não encontrar seus livros nas prateleiras. Tomei coragem adolescente, esperei a poeira baixar, me aproximei por trás do bigodudo com cara de trotskista e cutuquei suas costas com o dedo indicador. No que ele se virou, fuzilei: “Você é o Paulo Leminski?”. Ele abriu um sorriso maroto, me apresentei e disse, com ar de desafio, que havia acabado de ler o Catatau!”. O cara fez cara de espanto, riu e emendou: “PoRRRa, mas nem eu consigo mais ler aquele livro!”. Perguntei se era verdade que ele havia escrito o Catatau bêbado. Leminski: “Não exatamente”, respondeu, dando uma risadinha sacana. Peguei seu telefone e combinamos a entrevista para aquela tarde.
Algumas horas depois liguei para o tal número e a mesma voz, só que mais relaxada e amistosa, me atendeu com um carinhoso “Oi, meu negô...tudo bem?”, um tratamento que, para um curitibano, me pareceu no mínimo suspeito. “Vamos combinar nosso papo para as 3. Vocês aparecem aqui com o gravador”. Quase desligando, emendou: “E não se esqueçam de trazer umas garrafas de vinho branco!”.
De tarde, ao lado do meu amigo Joel Sampaio, então repórter da Folha de Londrina, desci do ônibus no bairro Cruz do Pilarzinho, perto do pequeno estádio de futebol, e procurei a rua Jorge Khoury Brahim, 874. Subindo a rua, a primeira surpresa: a seqüência dos números das casas não fazia sentido algum. Lembrei de um poema dele que falava do louco que todo bairro tem. Quase no alto, identifiquei a casa que havia visto na foto da Veja. Leminski estava de camiseta e roupa branca, varrendo a varanda. Fomos recebidos calorosamente. Na entrada da sala da casa da Cruz do Pilarzinho, além das almofadas no chão e um ar meio hippie na decoração, a primeira coisa que me chamou a atenção foi um cartaz enorme emoldurado na parede e que trazia apenas uma palavra: OBA!
Falando orgulhosamente de suas recentes parcerias musicais, Leminski comenta sobre os três livros que estavam para sair pela Brasileinse: mostra a arte da capa de Caprichos e Relaxos, e fala animadamente sobre as biografias Matsuo Bashô e Cruz e Souza. Leminski pergunta sobre Londrina e diz de sua admiração por Domingos Pellegrini e Arrigo Barnabé (“barra-pesada”!). Sem ficar parado um minuto, Leminski mostra livros e mais livros, dele e de outros, comentando sobre tudo como uma metralhadora giratória. A entrevista rola entre fumaças e goles de vinho, com Leminski nos deixando completamente à vontade, como alguém que se conhece há muito tempo. Começamos falando sobre política: “Já fui marxista. Mas acho que tudo está amarradinho demais na teoria marxista. Hoje acho a ideologia nociva à poesia. Ela é apenas um dos instrumentos para se entender a realidade. A poesia é algo que deve obedecer apenas a sua sensibilidade e inteligência. Caras com ideologia têm respostas para tudo e eu não agüento mais pessoas que têm um estoque enorme de certezas. Eu quero é a incerteza, e o marxismo é só certeza, coisa que eu, aos 38 anos, não quero mais”.
Mudamos o papo para a MPB (que ele acredita estar passando por uma fase de infantilização), crítica, Caetano Veloso e, claro, poesia: “A boa poesia nunca se impõe num primeiro momento. Ela tem que se impor depois. A poesia é a surpresa, é o anti-discurso. A hora em que a boa poesia pinta na sua frente ela corre o risco de você achar que aquilo é ruim porque ela feriu uma série de automatismos de gosto. Não vejo consistência na poesia marginal. Você pode ser contra a poesia concreta, mas pelo menos ela tem o mérito dela ser clara”.
O telefone toca sem parar. Leminski agora trabalha em casa enquanto cuida de suas duas filhas pequenas, Áurea e Estrela. Estrela devia estar fazendo alguma arte, pois em certo momento é repreendida de um jeito que me chama a atenção: “Estrelinha, eu não estou gostando...Vou ter que tomar medidas drásticas: te ponho num campo de concentração!”. Pergunto sobre suas leituras, e ele comenta sobre a importância da poesia oriental e provençal e concreta, Pound, e de sua experiência no mosteiro beneditino em São Paulo. “A primeira influência que eu tive foi a poesia greco-latina. Aprendi Latim aos 14 anos”. Pergunto sobre a questão de ser poeta social, tema de um de seus poemas mais conhecidos ( “eu queria ser tanto/ um poeta maldito”): “Ah, isso me assombrou durante anos. Neste poema estou zombando de mim mesmo. No Terceiro Mundo a gente tem consciência pesada por ter almoçado e jantado. A felicidade geral do povo é da alçada de duas coisas: da administração pública ou da revolução. A poesia é absolutamente inadequada para fazer isso. Quando o poeta faz um poema social ele está querendo estar apenas dar um alívio para sua consciência de classe média. Poesia não é jornalismo, é uma outra coisa. Aliás, é uma outra substância. O Fidel, que não é poeta, tem uma frase muito interessante: ele diz que preferia um bom poema de amor a um mau poema político, porque o mau poema político desservia a revolução. A verdade é que a poesia articula muito mal no real histórico imediato”, fulmina, para nosso espanto. Pergunto sobre sua visão de poesia: “É o princípio do prazer na linguagem. A linguagem é o instrumento de pensar e de se relacionar com nossos semelhantes. É o que torna possível a vida social. Historicamente, existem povos sem prosa, mas não sem poesia. O povo mais atrasado da Austrália ou do interior da África tem seus cantos, suas fórmulas métricas, de encantamento”.
Leminski conta causos e mais causos, como o de um cara mutcho lôco que desembarcou em sua casa de táxi, chapéu de cowboy e mochila nas costas. “Pensei: putz, mais um vendedor!”. Era um professor do Novo México que queria discutir pessoalmente o Catatau, com umas cem perguntas anotadas num caderno. “O Catatau, sob alguns aspectos”, diz Leminski, “é uma tradução do Finnegan’s Wake, em termos do discurso louco”. Fala de seus encontros com Caetano, Mautner e Gil (Leminski estava embalado com o sucesso de “Verdura”, composição sua gravada por Caetano um ano antes). No meio da conversa, chega Alice, e a conversa continua ainda mais animada. “Vocês querem mais vinho?”.
Antes de irmos embora, já de noitinha, Leminski pede para ver alguns poemas meus e comenta sobre eles com generosidade. Convida-nos para tomar uma “sopa especial” (horrível, por sinal), que ele dizia ter inventado.

“A noite / me pinga uma estrela no olho / e passa”.

Vinte e cinco anos depois, só posso dizer que poucas vezes um encontro foi tão determinante para minha vida. Saí dali feliz, energizado, cheio de idéias e vontade de fazer coisas, principalmente viver a poesia. Certas frases me bombardeavam a cabeça, como “Eu sou um cara que defendo a ligação da vida e a poesia num grau máximo”, “Depois de atingir o artesanato do claro, quero o direito de ser obscuro”, “O lance agora é cada poeta fazer sua síntese particular”. Minha idéia estereotipada dos poetas como seres chatos, mal-humorados e pedantes havia caído totalmente por terra naquele encontro com Leminski. Nele, eu havia cruzado alguém capaz de provocar, com um imbatível bom humor, a poesia e a criatividade em quem estivesse à sua volta. Foram muitos outros encontros com Leminski nos próximos cinco anos: todos intensos e memoráveis, seja em Londrina, São Paulo ou em Curitiba, já nos últimos meses de sua vida, quando eu trabalhava no Nicolau. No entanto, aquele encontro, naquela tarde fria num bairro polonês em Curitiba, foi definitivo para mim.



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