sexta-feira, janeiro 31, 2014

WILLIAM BURROUGHS, 100 ANOS


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Poeta narra encontro com William Burroughs

A entrevista de duas horas de Rodrigo Garcia Lopes com o escritor

31 de janeiro de 2014 | 19h 30

Rodrigo Garcia Lopes - Especial para Estado

      Começo dos anos 90. Eu fazia mestrado na Arizona State University e descobri que a instituição tinha adquirido uma coleção especial de William Burroughs. Foi então que decidi focar minha dissertação em sua obra. Em minha escrita, os cut-ups (técnica de colagem textual) não foram tão importantes quanto sua percepção e visão, embora tenha feito alguns poemas (C:polivox.doc) e experimentos poéticos com eles. “Assaltem o Estúdio Realidade e retomem o universo” é uma frase que aparece em Nova Express (1964) e inspirou o título de meu livro de poemas Estúdio Realidade e do CD Canções do Estúdio Realidade (ambos de 2013). A expressão “estúdio realidade”, como eu a leio, traz embutida a ideia da realidade, em nossa Idade Mídia, como algo cada vez mais fabricado e manipulado, sobretudo pelos meios de comunicação de massa e pela internet. Ao mesmo tempo, serve de metáfora para o mundo atual. Os escritores, segundo Burroughs, teriam o poder de desescrever o filme da realidade, de criticar e desconstruir suas estruturas.
       Em março de 1991 contatei James Grauerholz, agente literário e amigo de Burroughs, e no dia 13 de maio fui para Lawrence, Kansas, em uma região de frequentes tornados. Apesar de ter me preparado para o encontro, estava ansioso. O “cosmonauta do espaço interior” e membro fundador da geração beat morava em uma casa com árvores frondosas. No número 1927 da Learnard Avenue ele escrevera suas últimas obras, como a trilogia composta por Cities of the Red Night, The Place of Dead Roads, The Western Land, além de My Education: a Book of Dreams, diário de sonhos publicado em 96. Quando eu e James chegamos, Burroughs já nos esperava na pequena varanda. Trajava camisa marrom, calça jeans e um elegante chapéu fedora.
      Foi uma entrevista longa, de mais de duas horas. Ele estava vivendo uma vida bem tranquila, diferente do fim dos anos 70, em Nova York, quando a heroína o fisgara novamente. Fazia tratamento de manutenção com metadona. Escrevia todos os dias. Os convites para leituras, exposições de arte, gravações e participações em filmes e discos haviam aumentado. David Cronenberg havia acabado de filmar seu livro mais conhecido, Almoço Nu (no Brasil, Mistérios e Paixões), e ele estava animado com o resultado.
    Embora a saúde não fosse mais a mesma (havia sofrido uma cirurgia cardíaca uns meses antes), estava mais lúcido do que nunca ao falar de seus temas favoritos, como o vício como metáfora e a palavra como vírus. “Desde o começo eu tenho estado mais preocupado, enquanto escritor, com o vício em si mesmo (seja a drogas, sexo, dinheiro, poder) como um modelo de controle, e com a decadência suprema dos potenciais biológicos da humanidade, pervertidos pela estupidez e pela malícia desumanas.” Sobre o futuro da literatura, disse, entre goles de Coca-Cola (com vodca, como fui descobrir quase no fim da entrevista): “Não acredito que outras tecnologias e artes serão capazes de substituir a literatura. As pessoas vão continuar lendo. Há coisas que você não consegue numa tela ou num filme. Com um livro as pessoas podem sentar-se em qualquer lugar e é como se um filme estivesse passando em suas cabeças”. Sua voz era metálica, monocórdia, arrastada. As palavras eram pontuadas com um leve repuxar de canto de boca. Por toda parte, gatos, uma de suas paixões e tema de O Gato por Dentro (1986). Remetendo aos egípcios, via gatos como companheiros psíquicos, familiares.
    Burroughs situou sua obra dentro da antiga tradição picaresca, de Petrônio, Cervantes, Rabelais. Escrevia em vários estilos, que iam da ficção científica ao romance policial (na tradição hard-boiled de Raymond Chandler e Dashiel Hammet), do western ao diário de viagem. Satirista genial, visionário, Burroughs foi um dos escritores do século 20 que mais levou adiante o “desregramento gradual e racional de todos os sentidos” proposto por Rimbaud. Depois da trilogia cut-up, composta por Soft Machine, The Ticket that Exploded e Nova Express, onde desconstruía o romance tradicional, nos anos 80 e 90, Burroughs voltou a uma forma narrativa mais linear, sem nunca abandonar seu projeto literário e político de questionar as estruturas da realidade. “Talvez o conceito mais básico da minha escrita seja o credo num universo mágico, num universo de muitos deuses, frequentemente em conflito.”
    Burroughs foi educado, bem-humorado, paciente e atencioso, desmontando a imagem que eu fazia dele. No fim, tiramos algumas fotos e ele ainda me presenteou com uma de suas pinturas. Comentou que acabara de voltar de uma visita à casa de Whitley Strieber, autor de Comunhão: Uma História Real, e estava fascinado com o tema da abdução alienígena. No entanto, ficara desapontado por não ter tido nenhum contato com eles. Eu já não poderia dizer a mesma coisa. 

RODRIGO GARCIA LOPES É POETA, COMPOSITOR,JORNALISTA, AUTOR DE ESTÚDIO REALIDADE (7 LETRAS)


Veja também: link Mostra de fotos em Londres joga luzes sobre estilo e método de Burroughs  

segunda-feira, janeiro 13, 2014

Entrevista de Rodrigo Garcia Lopes para Claudio Portella (jornal Cândido)

Entrevista | Rodrigo Garcia Lopes

Rodrigo Garcia Lopes em dose tripla

Com novo CD e coletânea de poemas, Rodrigo Garcia Lopes aguarda a publicação de O trovador, um romance policial que se passa no Norte do Paraná e que marca sua estreia na prosa


Cláudio Portella


Foto: Jaqueline Sasano

William Burroughs, um dos principais nomes da geração beat, sempre foi uma referência para o escritor paranaense Rodrigo Garcia Lopes. Em 2013, o autor de Almoço nu volta a inspirar Garcia Lopes em sua nova empreitada: seu mais recente livro de poemas, Estúdio realidade, bem como o álbum Canções do estúdio realidade, tiveram seus títulos nomeados a partir de uma frase de Burroughs que aparece em seu livro Nova express, (“Assaltem o Estúdio Realidade e retomem o universo”). “A expressão, como a leio, traz embutida a ideia da realidade, em nossa Idade Mídia, como algo cada vez mais fabricado e manipulado, sobretudo pelos meios de comunicação de massa”, explica Garcia Lopes em entrevista ao Cândido.
O poeta londrinense ainda fala sobre sua primeira experiência na prosa, com O trovador, romance policial que tem como pano de fundo o Norte do Paraná. “Foi uma grande aventura escrever este romance. Pesquisei muito a história da colonização do norte do Paraná em bibliotecas daqui e dos Estados Unidos, em museus e em sites”, explica Garcia Lopes, que ainda fala sobre as canções de seu novo CD e da cena literária brasileira contemporânea.


O título (Estúdio realidade) do seu novo livro de poesia, bem como do seu novo CD (Canções do estúdio realidade), foram cunhados de um livro de William Burroughs. A capa do livro traz uma foto do escritor americano tirada por você. Em que medida a obra de Burroughs influenciou a sua criação?
É, aquela foto foi curiosa, nós criamos juntos. O livro sai em maio pela 7Letras, do Rio. Minha dissertação de Mestrado, na Arizona State University, foi sobre os romances de Burroughs, filosofia da linguagem, intertextualidade, entre outras questões. Os cut-ups [técnica de colagem utilizada por Burroughs] foram importantes, eu mesmo fiz alguns experimentos poéticos com isso. “Assaltem o Estúdio Realidade e retomem o universo” é uma frase que pinta no livro Nova express (1964). A expressão, como a leio, traz embutida a ideia da realidade, em nossa Idade Mídia, como algo cada vez mais fabricado e manipulado, sobretudo pelos meios de comunicação de massa. O livro dá continuidade a uma característica comum no meu trabalho: o sentido crítico, a busca pelo inusitado e pela surpresa, por diálogos com diversas tradições literárias, pela pesquisa de novos dizeres, além da exploração e práticas poéticas diversas, que vão de formas ancestrais de poesia (como a poesia visual) até o hipertexto contemporâneo. O título também sinaliza a poesia enquanto artifício, com o poder de questionar essa “realidade”, bem como o de construir e inventar outras. Acho que a poesia pode cumprir seu papel de questionar os padrões medianos de sensibilidade e sentido, de provocar uma re-sensibilização.

Sua poesia tem uma forte pegada pop. O que, em alguns momentos, lembra o poeta Paulo Leminski. Mas noto que apesar da sua levada pop, o arremate é quase sempre visceral, como se você estivesse aprofundando o que o Leminski não queria, ou não teve tempo de trazer para a poética. É isso? Fale sobre a sua poesia, como ela se processa?
Em que sentido, “pop”? Eu não gosto dessa designação. Pra mim, passa a ideia daquilo que não fica, de algo descartável, superficial. Vejo muita gente usando o termo, inclusive poetas jovens. Aliás, hoje parece haver muita pose e pouca poesia. Também acho que dizer que a poesia de X lembra a de Z desmerece a singularidade de cada poeta. Qual a semelhança entre uma maçã e uma laranja? Nós somos em boa parte um arquivo vivo de todas as leituras e experiências que afetaram nossa sensibilidade. Eu tenho afinidade com muitos poetas, minha poesia tenta dialogar com todo um passado. E um presente também, é claro. Leminski foi importante, mas muitos outros (e não só escritores) também foram.

Quando você esteve com Burroughs ele lhe disse que achava que a maioria dos poetas eram essencialmente prosadores preguiçosos. Você acha mesmo que isso se encaixa à perfeição na poesia brasileira atual? Eu acho que a poesia mais interessante que se tem feito no Brasil nos últimos anos é justamente essa, e que ela não tem uma relação direta com a prosa longa, talvez com a crônica. Bem, o que você realmente pensa sobre isso?
Eu concordo com o que o Burroughs me disse naquela entrevista. Muitos poemas que leio hoje em dia são apenas prosa cortada em linhas, arbitrariamente, e raramente linguagem em versos. Eu discordo de você que a poesia mais interessante tem sido nessa linha, embora eu ache que o atrelamento a uma certa ideia de “materialidade da linguagem”, a uma ideia de “concisão”, além do poema curto, no Brasil das últimas décadas, impediu ou inibiu a criação de poemas mais longos, de fôlego e visões amplas, como encontramos com frequência na poesia norte-americana, na sul-americana ou mesmo entre nós (Jorge de Lima me vem à mente).

burroughs
Rodrigo Garcia Lopes e o escritor beat William Burroughs, uma das grandes influências do poeta londrinense.

O livro de poesia Estúdio realidade tem uma parte (Quarto Fechado) onde os poemas giram em torno de elementos que constituem o romance policial. Você acaba de concluir seu primeiro romance policial, O trovador. O seu anseio em escrever uma história de mistério era uterino? Provém do mesmo útero dos poemas policiais? No caso, Burroughs tinha razão, os poemas policiais foram uma preliminar enquanto criava coragem para escrever o romance?

Sempre fui apaixonado pela história da colonização do Norte do Paraná. Embora eu lesse romances policiais, é uma paixão ou “vício”, como diz W. H. Auden, mais recente. Fui escrevendo os poemas “policiais” enquanto escrevia o romance. Fazendo paralelos entre a operação poética e a investigação. Dos gêneros narrativos, acho que o policial é o que mais se aproxima da poesia, pelo menos para mim. Lembre que Poe, o pai do romance policial, em Filosofia da composição, parte de um poema (“O corvo”) para explicar o procedimento construtivo “de trás para frente” que é característico de uma boa história policial.

Em O trovador, a imprensa britânica Paraná Plantations, loteia as terras férteis do Norte do Paraná. A história também se passa na Londrina de 1936. Como foi recriar e reconstituir a região do Norte do Paraná dos anos 1930? Você fez pesquisas históricas, quais as suas fontes?

Foi uma grande aventura escrever este romance. Pesquisei muito a história da colonização do norte do Paraná em bibliotecas daqui e dos Estados Unidos, em museus, em sites específicos. A biografia de Lord Lovat foi importante, jornais como o Paraná-Norte, e muitas, muitas fotografias antigas. Fiz consultas em arquivos físicos e online, leitura de bibliografia específica ao tema e ao período histórico (o contexto mundial e brasileiro nos anos 1930, por exemplo). A colonização é o pano de fundo do livro, e uma página bem pouco conhecida na nossa história e menos ainda explorada pela literatura brasileira. Depois da fase de levantamento histórico, perfil dos personagens principais e planejamento da obra, veio a escrita propriamente dita. Um romance policial de qualidade (que tenha trama bem construída e interessante, cenário original, personagens multidimensionais, pistas inteligentes, detetive cativante e vilões memoráveis) requer bastante trabalho, planejamento e pensamento crítico. O mais importante, neste gênero, pra mim, além do protagonista, é a trama, a intriga, que no caso de O trovador é bem complexa. Foi o que deu mais trabalho, além da reconstituição de época. Repleto de ação, suspense e reviravoltas, e sem perder seu foco principal, que é a investigação.

Quais são seus autores preferidos no romance policial e o que acha do que se está produzindo hoje do gênero no Brasil?

Poderia citar muitos, mas os preferidos são Conan Doyle, Agatha Christie, Josephine Tey, P.D. James, na Inglaterra. Na França, Simenon. Nos EUA, Dashiel Hammet, Raymond Chandler, Ross Mcdonald, Michael Connelly, Scott Smith e Dennis Lehane são meus favoritos. Há uma safra de escandinavos muito boa. No Brasil, citaria Rubem Fonseca, Luiz Alfredo Garcia-Roza, Marçal Aquino (em alguns livros). Embora a situação tenha melhorado nos últimos anos, o policial brasileiro ainda tem pouca tradição no nosso sistema literário e encontra resistência por parte da crítica, ora considerado como subliteratura ou mera literatura de entretenimento. Acho que o gênero permite levantar importantes reflexões históricas e questões de identidade, moral, corrupção política, relações internacionais, colonialismo, propondo, ao mesmo tempo, uma reescrita da história.

Foram alguns anos para escrever O trovador, como foi sua rotina de trabalho no romance durante esse período?
É normal que seja um trabalho demorado. Depois que vi uma entrevista do Lehane dizendo que o primeiro romance dele levou 3, 4 anos, fiquei mais tranquilo. Por tratar-se de um romance de mistério e investigação que emprega fatos históricos e personalidades reais, pra conseguir a necessária verossimilhança literária foi vital investir tempo integral para escrevê-lo. Em 2009 fui contemplado com uma bolsa Funarte de Criação Literária, e isso foi fundamental, me deu o tempo para me dedicar exclusivamente ao projeto. Seguia uma rotina diária de trabalho. Os primeiros meses foram de pesquisa histórica, contextualização sócio-política do período, leituras de relatórios da companhia em jornais brasileiros e britânicos. Depois veio o plano de enredo, as caracterizações dos personagens, e um primeiro esboço para os capítulos que continham os pontos-chaves e viradas na trama. Também li muitos livros sobre a técnica de escrever um romance policial que me foram muito úteis. Por exemplo, eu estava empacado na parte 2, que sempre é a mais extensa e complicada. Um dos livros aconselhava que, se isso acontecer, esqueça tudo e escreva a cena do confronto final entre detetive e criminoso. Foi o que fiz. Eu, que nunca bebo para escrever, comprei duas garrafas de vinho tinto e voltei para meu refúgio em Floripa. E funcionou. Com a cena-chave delineada, fui escrevendo alguns capítulos de trás pra frente, tendo em vista aonde a ação iria desembocar.

Recentemente você lançou Canções do estúdio realidade, seu segundo CD após 12 anos do lançamento de sua estreia, com Polivox (2001). O que mudou do primeiro trabalho para este?
Ele está todo disponível no site. Em Polivox eu poderia ter feito um disco de poesia sonora, ou apenas de poesia falada. Naquele trabalho a intenção era reunir canções e poemas escritos até aquele momento, criar um território híbrido, onde música e poesia — como as pegadas de um pássaro na areia — fossem indissociáveis (como sempre foram, dos rapsodos gregos aos rappers). Lá, os poemas recebiam três tratamentos básicos: 1) Musicados e transformados em outra coisa: canções; 2) Sob a forma de poetrilhas ou salas sonoras (aguçando uma viagem sonora com o texto); 3) Lidos no seco, explorando o som da linguagem em si. O disco novo adensa as experiências musicais iniciadas no Polivox, mas com foco apenas na canção. O trabalho explora, em 12 faixas, formas possíveis de compor canções hoje em dia. As canções se tornam campos de possibilidades poético-musicais. Além da coisa da composição, neste disco assumo com mais amadurecimento o lado intérprete, e também o violão, que estrutura minhas canções.

Neste novo CD, em que pese os diálogos com variados ritmos musicais, há uma unidade muito forte em quase todas as músicas. Essa unidade foi procurada ou tem relação mais direta com o timbre da sua voz, a poesia, o violão de nylon, o diálogo com o cinema, etc?

Bem, minha voz e violão são o centro e a base dos arranjos. Eu estruturo as canções de um jeito que as intenções de outros instrumentos já ficam audíveis ali (como o baixo, principalmente). Conversei muito com o André Siqueira sobre a sonoridade que queríamos no disco. Essa unidade foi conseguida graças a ele, um multi-instrumentista de Londrina, que escreveu 10 dos 12 arranjos.

Na canção “New York”, talvez a que mais se diferencie do CD, em determinado momento você entoa um New York, New York... É uma “brincadeira” com a famosa canção imortalizada por Frank Sinatra?
“New York” é um rap com levada funk (não o carioca!). É a única (com exceção da primeira parte de “Fugaz”) que é em canto-falado. Sim, a música faz uma citação de Sinatra entre a primeira e a segunda parte. Acabamos de gravar o clipe desta música, dirigido pelo Anderson Craveiro. Vai ficar bonito.

sexta-feira, janeiro 10, 2014

RESENHA DE "ESTÚDIO REALIDADE (7 Letras) no VALOR ECONÔMICO



A natureza da linguagem em Garcia Lopes

Por Heitor Ferraz | Para o Valor

     Não deixa de ser interessante que um dos temas caros ao romantismo - o da contemplação da natureza e a fusão do eu lírico com toda essa verdura estilizada - continue tendo, nos tempos de hoje, o mesmo apelo. No entanto, não podemos nos apegar à superfície dos poemas, e cabe perceber que essa natureza contemporânea já nos chega problematizada pela própria linguagem: é uma natureza inventada pela linguagem e ao mesmo tempo questionada por ela e sobre ela. É como se o poeta retirasse de suas observações uma imagem e, num segundo seguinte, já questionasse a validade dessa imagem.
     A questão é complexa, não há dúvida. Mas ela está presente no recente livro "Estúdio Realidade", do poeta paranaense Rodrigo Garcia Lopes, uma das vozes representativas da poesia brasileira surgida nos anos 1990. Há em Garcia Lopes desde o princípio, em "Solarium", de 1994, uma preocupação com a diversidade formal. Mas já absorvida pela ideia da "poesia pós-utópica", de Haroldo de Campos, com "a pluralização das poéticas possíveis". Havia uma procura da expressão que desse conta dos embaralhamentos da vida contemporânea. Nesse sentido, sua poesia trilhou o inusitado caminho da variação formal e da polifonia, cada poema exigindo uma maneira própria de se apresentar na página.
     Mas se há um tema bastante recorrente em sua poesia é o da natureza, como motivo de reflexão e criação de novas imagens e questionamentos. Como já havia em "Nômada", de 2004, essa paisagem descrita pelo poeta é uma espécie de fruto do pensamento (como ele mesmo diz num dos "24 aforismos sobre poesia", no fim de seu novo livro: "Talvez poemas devessem ser mais que simplesmente escrita sobre experiência, e sim escrita como experiência"). Essa tem sido a sua procura obsessiva: uma expressão que case imagem e pensamento, por meio de uma linguagem que se questione o tempo inteiro, pois ciente de seus desgastes. Como já dizia a crítica Maria Esther Maciel, o poeta "faz do deserto a sua paisagem".
      Ele não procura a natureza em si, mas os seus ecos, pois em seu estúdio a realidade não é um objeto a ser flagrado diretamente. Ele deve ser captado pelas bordas, pelas imagens que proporciona, como se pode ler em "No Estúdio Realidade", que abre o livro: "Uma relâmpago é flagrado por seus ecos. Santo súbito". Em outro fragmento lê-se: "A pedra comunica seu sonho de estar sobre o ar da paisagem na parede. O espelho, uma perda".
     Em "Notícias do Mundo", por exemplo, os versos parecem relatos curtos, quase títulos estilizados de jornais ("Águas muezins no vale das sombras/ África agoniza/ Iraque se debate/ Índia se indigna/ Impérios definham/ Morro em guerra fratricida" etc.). A certa altura, o poeta anota, irritado: "Mentiras, mentiras". E ao fim, diz: "E, no entanto, eu aqui/ à sombra de um pensamento/ de um amor que seja um lugar,/ um lugar como um pensamento./ Mas isto é ir muito longe:/ Isto é acordar".
      "Estúdio Realidade", cujo título é tomado de um romance de William Burroughs, é um bonito livro, mas exige do leitor uma paciência de detetive (alguns poemas tratam diretamente do assunto). Ele lança pistas e despistes. Cabe ao leitor decifrá-los, não diretamente, mas pelos ecos que criam.

"Estúdio Realidade"
Rodrigo Garcia Lopes 7Letras 136 págs., R$ 35,00 / AA+

AAA Excepcional / AA+ Alta qualidade / BBB Acima da média / BB+ Moderado / CCC Baixa qualidade / C Alto risco


NO SITE DA RPC TV


08/01/2014 14h52 - Atualizado em 08/01/2014 14h52

Descubra o Paraná: Conheça o poeta do primeiro vídeo da campanha

Rodrigo Garcia Lopes criou poema sobre a beleza das imagens do time-lapse

Por Redação RPC TV
Rodrigo Garcia Lopes contribuiu com versos à campanha Descubra o Paraná (Foto: Reprodução/Redes sociais)Rodrigo Garcia Lopes contribuiu com versos à campanha Descubra o Paraná (Foto: Reprodução/Redes sociais)
Rodrigo Garcia Lopes foi incumbido de criar uma das frases que encerram um dos vídeos da campanha Descubra o Paraná, que apresenta o Pico Paraná em vídeos de time-lapse. Sobre essa coisa de ser um autor por encomenda, tão distante da zona de conforto de quem espera a inspiração vir para criar, Rodrigo comenta que a experiência é válida: "É um desafio. Um exercício. Serve para você testar e ver quão afiado está o corte".
O autor contribuiu com a campanha com os versos:
"como
em alguns segundos
chamar de pouco
o que é tanto?"

Sobre a criação dessas linhas, Rodrigo explica o processo, que contou com inúmeras sessões dos vídeos da campanha: "Assisti aos vídeos diversas vezes, em períodos diferentes do dia, com e sem a trilha sonora. Tudo para me inspirar na hora de criar", explica. Rodrigo conta também que, desde o princípio, se sentiu inclinado a adotar a solução do haikai, forma poética japonesa que prima pelos versos rápidos, curtos e cheios de significados.
"Entre as sugestões que eu enviei, havia versões com essa cara de haikai", conta. O texto escolhido, no entanto, foge ao padrão poético japonês, mas encerra outras questões também interessantes sobre a inspiração e o processo criativo do autor. "Na versão escolhida, eu brinquei com a própria tarefa de se reduzir muito tempo em apenas 30 segundos, que é o que o vídeo faz", diz.
Sobre as demais versões, Rodrigo lembra de uma em que ele procurou falar daquilo que as imagens lhe diziam. "Numa das versões, eu associei o pico a uma ilha negra, e as nuvens a um mar branco. Noutra sugestão, falava da velocidade das nuvens e das estrelas, e da montanha ali, sempre parada", revela.
Novos projetos
Além da participação na campanha, o escritor fala sobre as perspectivas para 2014. "No começo do ano, lanço um romance policial", conta. O livro, batizado de "O Trovador", se passa em 1936 em Londrina, Inglaterra e Escócia e usa o processo de colonização britânica do norte do Paraná no enredo e é o fruto de oito anos de trabalho do autor. Além do livro, Rodrigo, que também compõe e canta, pretende intensificar o calendário de shows de seu último disco, "Canções do Estúdio Realidade". Músicas desse álbum, inclusive, fizeram parte da trilha sonora da série Os 7 Pecados, exibida pelo Casos e Causos em 2013.

segunda-feira, janeiro 06, 2014

Resenha de "Stolarskais", na Folha de hoje


Crítica poesia

Humor ácido domina versos breves postados no Instagram

'Stolarskais' reúne 113 haicais do designer André Stolarski, morto em agosto

RODRIGO GARCIA LOPES 
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Stolarskais" reúne 113 poemas do designer paulistano André Stolarski, morto aos 43 anos em agosto.

O haicai é a forma mais breve de poesia do planeta e encara o desafio de dizer o máximo com o mínimo de palavras (e ganhar o leitor por ippon --um golpe perfeito nas artes marciais japonesas).

Stolarski procura seguir a divisão em três linhas (de 5-7-5 sílabas). É uma convenção básica do gênero, com a qual brinca em "Promoção: use/ De-zes-se-te-sí-la-bas'/ Leve mais cinco".

Revela influências de autores como Millôr Fernandes, Oswald de Andrade (em sua ênfase no poema-piada) e de Paulo Leminski.

Stolarski ironiza sua prática textual, em tempos em que tudo, até o haicai, corre o risco de virar fast-food: "Abri franquia:/ Delivery de haicai/ Noite e dia".

O falso "espontaneísmo" do haicai é uma armadilha e nem sempre funciona. Há momentos para centelhas: "Na rede, ao léu/ Repousam meus sonhos/ Sob a fronha do céu" (apesar do pronome pessoal parecer excessivo). Em outros, consegue ser lapidar: "Vai a vida/ Destino preciso/ Via indefinida".

INSTAGRAM

Originalmente, os poemas foram postados no Instagram durante o período em que o autor tratava um câncer.

Neste contexto, parece difícil para o autor conseguir se afastar de todo do "eu", manter a objetividade e o estado de mu-ga ("não eu") que é inseparável do haicai genuíno.

Apesar da presença do humor, muitas vezes ácido, a morte é presença sutil ou evidente em 25 das peças.

RODRIGO GARCIA LOPES é poeta, compositor e tradutor, autor de "Estúdio Realidade" (7Letras, 2013)

STOLARSKAIS

AUTOR André Stolarski
EDITORA Cosac Naify
QUANTO R$ 49,90 (224 págs.)
AVALIAÇÃO regular

PALAVRAS (SYLVIA PLATH) Tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Mendonça




PALAVRAS



Machados
Que batem e retinem na madeira.
E os ecos!
Ecos escapam
Do centro como cavalos.


A seiva
Mina em lágrimas, como a
Água tentando
Repor seu espelho
Sobre a rocha


Que cai e racha,
Crânio branco,
Comido por ervas daninhas. 

Anos depois eu
As encontro no caminho –


Palavras secas, sem destino,
Incansável som de cascos.
Enquanto
Do fundo do poço, estrelas fixas
Governam uma vida.




SYLVIA PLATH

(Tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça, Sylvia Plath: Poemas, Illuminuras)

domingo, janeiro 05, 2014

Resenha de "Canções do Estúdio Realidade" no Valor Econômico

"Canções do Estúdio Realidade"

Com vários títulos de poesia e tradução publicados, o paranaense Rodrigo Garcia Lopes tem como primeira ocupação a literatura. Não espere deste "Canções do Estúdio Realidade" um disco de "spoken word" (poesia declamada), entretanto. Garcia Lopes é afinado e tem décadas de prática no violão. Sabe bem como emular clássicos da MPB. Autoproduzido, o CD acerta em cheio nos momentos mais acústicos/intimistas ("Butterfly" e "Ninguém Melhor que Ela"). Soa também respeitável sob contornos jazzísticos, de verve setentista ("Alba"). Quando tenta injetar mais suingue no material, entretanto, comete sérios deslizes como o forçado pseudo-rap "New York". Inclui uma parceria com Paulo Leminski ("Adeus").

Rodrigo Garcia Lopes. Distribuição: Tratore / BB+

AAA Excepcional / AA+ Alta qualidade / BBB Acima da média / BB+ Moderado / CCC Baixa qualidade / C Alto risco