sábado, dezembro 22, 2012

GREEN FLASH (poema de Rodrigo Garcia Lopes)



GREEN FLASH


Vida, você me deu tanto
não tenho como retribuir.
Me deu a trilha sonora contínua do mar
me deu este por de sol salmão
me deu o que deus nenhum
nunca deu.

Só tenho como pagar
com minha cota diária de espanto,
minutos de silêncio
espasmos de alegria
enquanto você cria.
Só posso prometer
ser seu
biógrafo fiel e privilegiado,
seu tradutor:
enquanto, dia a dia,
você segue escrevendo a mesma beleza,
musa incansável,
inalcançável

Com suas nuvens como deuses cambiantes
com o motor do seu oceano em nossos ouvidos
com a maré vermelha ardendo nos olhos
com a tarde que ainda nos deixa uma última surpresa:
no claro infinito horizonte do mar
a moeda gigante do sol mergulha mas deixa
esse milagre gradiente:
sobre sua cabeça dourada
numa fração de segundos
um brilho verde.



Rodrigo Garcia Lopes

(21 de dezembro, The Hermitage Artist Retreat, Flórida)

Green flash; raio ou brilho verde: "fenômeno óptico que geralmente ocorre ao nascer ou ao pôr-do-sol, quando uma pequena mancha verde fica visível por um curto período de tempo acima do sol, ou próximo dele " (wikipedia).

MANASOTA KEY (RODRIGO GARCIA LOPES)




MANASOTA KEY



Nas páginas do mar
pelicanos em linha
escrevem as sombras de seus peitos
ao quase tocarem uma onda.
O sol rascunha rubros
bilhetes de despedida, toda tarde.
Golfinhos, suas barbatanas
relatam os rudes caminhos
pela pradaria das baleias.
Mergulhões redigem sua escrita kamikaze,
suicida, invisível por instantes.

Nas páginas da areia
(cujas conchas são suas obras completas)
fósseis negros de dentes de tubarão
escrevem a autobiografia
de dois milhões de anos.
Rastro de guaxinim,
seu romance de aventura
da duna à estrada.
Um siri deixa sua assinatura
sobre marcas de pneus de um SUV.
Garrafa com uma mensagem, um pen drive
com a história de um naufrágio.

Nas páginas do céu
nuvens ancestrais e sempre-novas relatam
suas viagens sobre o mundo, infinitas.
Furacões emplacam best-sellers
sobre o Golfo do México
enquanto folhas de outono caligrafam no ar
ideogramas precisos,
memórias do vento.
Satélites traçam haicais de luz.
A lua amarelo-limão descreve seu brilho solene
sobre as palmeiras da Flórida.

Eu não escrevo nada.



Rodrigo Garcia Lopes 
(dezembro de 2012, The Hermitage Artist Retreat, Manasota Key, Flórida)

domingo, dezembro 16, 2012

HOJE EM SARASOTA, FLÓRIDA

http://myemail.constantcontact.com/Hermitage-Artist-at-Bookstore1.html?soid=1101367976801&aid=9Det2HS-Cyk

NA 'ILUSTRÍSSIMA" DE HOJE


O mistério de Burroughs
RODRIGO GARCIA LOPES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Lawrence, Kansas, 1991

      Eu colhia entrevistas para meu livro "Vozes e Visões"(Iluminuras, 1996). Estava morando no Arizona, fazendo mestrado sobre William Burroughs (1914-97). Cheguei a Lawrence, Estado do Kansas, no Meio-Oeste americano, onde o legendário escritor morava desde 1981. James Grauerholz, seu amigo e agente literário, foi me pegar na estação de trem. Senti um frio na barriga. Afinal, iria entrevistar o profeta da contracultura, o genial fora da lei da literatura, que fez a cabeça de Jack Kerouac e Allen Ginsberg e detonou uma revolução nas letras americanas.
        James percebeu minha ansiedade e disse que tudo daria certo. Quando chegamos, Burroughs já nos esperava na varanda de sua casa. Magérrimo, usando um elegante chapéu Fedora, nos acenou com sua bengala e sorriu.

James Grauerholz/Arquivo Pessoal
O escritor e compositor brasileiro Rodrigo Garcia Lopes com William Burroughs, em 1991, no Arizona
      Extremamente educado, bem-humorado, paciente e atencioso, em poucos minutos ele desmontou a imagem que eu fazia dele. Relaxei. Comentou que acabara de voltar do Canadá, onde fora acompanhar as filmagens de "Mistérios e Paixões" (baseado em "Almoço Nu", seu livro mais conhecido), dirigido por David Cronenberg.
     Impossível ficar indiferente à voz de Burroughs: metálica, arrastada e que ainda carregava o sotaque sulista de Saint Louis. De olhos azuis, o neto do inventor da máquina de calcular tinha um tique nervoso: repuxava um canto da boca enquanto falava. Ainda escrevia todos os dias. Disse que a casa estava sempre cheia de amigos e que saía cada vez menos, a não ser para dar alguma palestra ou para praticar tiro e pintar na propriedade de um amigo (as famosas "pinturas a tiro" que ele inventou).
     Sentamos na sala. Liguei o gravador. Começamos pela literatura. Falou de seus escritores favoritos (Conrad, Eliot, Proust, Rimbaud). Discutimos "o fim do romance", as vanguardas do começo do século 20 e os "cut-ups", técnica de "recortagem textual" que ele usou, sobretudo nos anos 60, para desconstruir o romance tradicional. "Hoje nós já vemos em 'cut-up'! A vida é um 'cut-up'. Toda vez que você olha pela janela ou caminha pela rua, sua consciência esta sendo editada por fatores do acaso."
     Durante a entrevista, que durou cerca de duas horas, ele fumou um cigarro atrás do outro (Player's Navy Cut, sem filtro). Levantava-se a cada 15 minutos, ia até um balcão que havia na cozinha. Erguia uma garrafa de dois litros de Coca-Cola, se servia e voltava. "Burroughs bebendo Coca-Cola?", pensei.
       Com seu raciocínio rápido e certeiro ele ia falando sobre os temas que eu colocava: linguagem, manipulação da mídia, conservadorismo, Aids ("uma invenção de laboratório"). Falou sobre o valor do acaso na criação artística, drogas, sonhos. Ao falarmos sobre as diferenças entre prosa e poesia, disse algo que se encaixa à perfeição na poesia brasileira atual. "Eu costumo dizer que a maioria dos poetas é essencialmente de prosadores preguiçosos". Pergunto sobre extraterrestres. "É bem possível que existam alienígenas vivendo entre nós. Tenho um amigo que tem contato com essas gangues". 
     Uma coisa me intrigava: durante a entrevista, em vez de ficar cansado, Burroughs ia estava cada vez mais animado e falante. Quando ele foi a seu escritório pegar algumas pinturas para me mostrar, aproveitei e fui até a cozinha. Embaixo do balcão, ao lado da Coca-Cola, havia uma garrafa de vodca quase vazia. Mistério explicado.
     Burroughs voltou com várias de suas pinturas abstratas e me presenteou com uma delas. Colocou-as sobre uma cadeira, acendeu um e me perguntou sobre o que eu conseguia ver. Então fizemos algumas fotos. Uma delas, em parceria. Fomos até o quintal, onde ele me mostrou com orgulho sua horta de tomates. Havia vários gatos (uma de suas paixões). Quando fui embora, eu ainda me beliscava. A sensação era a de que acabara de entrevistar um extraterrestre. E talvez tenha mesmo.