sexta-feira, fevereiro 26, 2016

"OUTRAS PRAIAS", de Rodrigo Garcia Lopes


         


      OUTRAS PRAIAS



1



O ar do verão vibrava como imitação
que os dedos do maestro regiam, Além,
(uma outra palavra para Adeus)
E sua ausência imediata, que são próprias
das coisas consideradas fora de seus centros;

Náufragas, como ilhas dispersas circundadas
por tanta Luz, e o mar hibernando o surf
das manobras rápidas, radicais, engolindo praias,
prises e personas
Uma tontura que persiste após
o estrondo doce do amor, antes e agora dobrando-se no Tempo

Tudo a caminho, tudo rápida passagem, impressões,
a textura da areia, seixos
ao redor do sexo que é tudo e que sustém em linguagem
Viva, a linguagem das marés e dos exercícios estratégicos do vento
que uiva às coisas e nomeia lagoas e dunas, uma gíria imaginária

O mar da página de jornal, gaivotas
bicando lâmpadas à procura de águas vivas, quebrando-se
Cristais,
& uma visão do vórtex do vir-a-ser distraindo
as cores excessivas, todo ornamento inútil, recolhidas em
fotografias dinâmicas, e que se revelam lentamente em suas
ausências em fuga, como nós, aos pés destas pedras, refletindo-nos
na mudança desse poço, em sua condição.

O que vemos daqui são gestos que querem o além
o reflexo de erras nunca vistas,
brisas nunca sentidas, uma viagem
sem volta a territórios livres, como nômades detidos
no meio de uma tempestade obsessiva. O que
carregamos são espelhos que refletem sempre
o diferente, enquanto nós, eu e você
mudamos juntos. Nuvens
dissipam-se em doces fragmentos, sentidos acenam
do outro lado da baía, onde estivemos
Há alguns instantes que ficaram

Misturados com a lembrança do instante diferenciado,
um ideograma na fumaça do cigarro, o haicai mais simples
recolhido num vazio que vibra, diz, e muda.
Um brilho secreto, isso o mar também nos traz
sem cobrança alguma
e além do privado e do profundo jaz
o não dito, o absurdo de calar, o conferido:
penínsulas e abraços

de mar, studio marinho. E o modo como ele
endereça suas maresias a nós mudos e humanos
com seu estilo que no fim revela ser apenas
a mancha do mar em sua blusa, uma blueprint, um sim.




2



O Agora voava, deixando nossas respostas
sem pergunta alguma.
Acabamos nos cruzando, a caminho da estação
onde nada se detém, na luz que grita atrás das montanhas,
No som de nossas vozes e olhares assustados
como sempre
Sílabas apagando beijos como a maré faz com nossas pegadas
recolhendo
Apenas o silêncio, o silêncio.
Registros de amanheceres sendo
Eternamente abertos para agentes secretos
Até que a página se vire como onda

Deixando paisagens no retrovisor
Longe de qualquer ideal de transparência ou nostalgia.

Linhas que nada são a não ser a trajetória das gaivotas
Deliciadas com as horas que ainda restam antes do pouso.
Primeiro dia de sol, a casa está vazia.
Tesouras repousam quietas ao lado de
Gencianas. Nova Geografia. A cena
Está quase completa, viva nos músculos que apanham rápido
um clichê qualquer no ar, uma sombra. A voz, cada vez mais,
Se estilhaçava, ficando assim impossível dizer
Quem falava ou soprava o vento
no stylus das árvores rabiscando um céu
que não era bem assim
O que se queria dizer, um espaço implodido a cada passo
Dentro do corpo onde a natureza sopra seu processo
As sentenças do mesmo rio nunca o mesmo rio
Códigos nascidos sem qualquer charme, e a gravidade
De tudo o que prossegue, indestrutível, viagem.



3



Aqui o céu é fino feito papel.

Regras se dissolvem como uma velha palavra na boca
velha manhã com um gosto de folhas secas na boca
Muito viva vívida doce e muito viva
distribuindo seu teatro, lírica barata, seu Gesamtkuntswerk,
nos telhados onde pássaros respiram, quietos,
sendo observados por gatos negros e cantados obsessivamente por
Cigarras. Invadem o verão. A indistinta voz que distribui
sons secos pela estação dos sustos, para além de si, desejo
De um presente acelerado como as ondas deste
doce Desterro,
O modo vazio e pleno como o olhar
faz
de tanta luz
o ar vibrar

Nos sentimos Oceanus, Pan, nos sentimos mais humanos
& sacamos
parte da hera tomando a janela onde pouco ou nada é dito
Apenas sentido, o limite de um "ouvir-se dizer"
que já não diz, reprisa
Velhas cenas de um teatro previsível.
Apenas o espectador mudou no fim de tudo
E as estações se amontoam num canto do céu esperando
Um milagre, uma confortável
Invisibilidade, que não tem nada a ver com
O excesso desse sol depois de três dias de chuva
Três úmidas palavras sussurradas e conduzidas como o vento faz

Às nuvens, nada necessariamente difícil ou vazio
gruda à pele, livre
De qualquer engodo, assinatura, assunto.
Horas e horas de vidro, sentenças sem nome flutuam
no manso ar do verão do interior e suas diferenças
Vêm à tona, enfim, o que nos deixa ao menos
uma chance para ouvir uma chuva invisível
atrás da porta pela qual acabamos de passar.




Rodrigo Garcia Lopes (em Solarium, 1994, editora Iluminuras)

segunda-feira, fevereiro 22, 2016

Resenha de "Experiências Extraordinárias" por Amador Ribeiro Neto

EXPERIÊNCIAS EXTRAORDINÁRIAS

Amador Ribeiro Neto

     Rodrigo Garcia Lopes (Londrina, 1965) é poeta, romancista, jornalista, compositor e tradutor de Whitman, Rimbaud, Laura Riding, entre outros. Autor dos livros de poesia: Solarium (1994), Polivox (2001), Nômada (2004), Visibilia (2005), Estúdio realidade (2013). Experiências extraordinárias (Londrina: Kan, 2014) é seu mais recente livro.

    No ano passado tivemos a oportunidade de comentar aqui Estúdio realidade. Concluímos a coluna assim: “Sobram: prosaísmos e clicherias. RGL está devendo-nos um livro de poesia”.
Pois o livro esperado chegou. Não vou dizer que tenha sido uma surpresa. Eu já conhecia, e até me habituara à qualidade da poesia de Rodrigo Garcia Lopes. A decepção foi o livro lançado anteriormente.
   Agora o poeta volta à conhecida forma e dá-nos uma poesia cravada no melhor trabalho de linguagem. Ele está tão bem que até poema de cunho filosófico ele faz. Com admirável desenvoltura. Poesia e filosofia, sabemos, dificilmente se entendem. Poemas que se dão no campo prioritário das ideias, poucas vezes não sucumbem ao didatismo, ao panfletarismo ou à persuasão.
    RGL sabe safar-se destas armadilhas. As partes um e quatro, que abrem e encerram seu livro, são um exemplo deste acerto. Cito “Império dos segundos”: “Se eu fosse parar pra saber / o sabor deste instante / não iria jamais perceber / do que é feito o durante, // a carne de cada segundo, / minuto de cada poente / de que é feito este mundo, / sangue, esperma, poeira, // não ia jamais me lembrar / de trama da tarde, museu / onde moram as velhas horas, / nem o duro rosto deste outro // outono, matéria, mistério / nem a memória, esse mármore / em fluxo, rugido em estéreo / de uma incessante cachoeira”.
    Nas quadras octossilábicas o poema insere uma reflexão heráclito-pessoana através de versos ritmicamente bem estruturados. Poesia, filosofia e música unidas.
    A parte dois é formada por haicais absolutamente encantadores. A mão certeira capta flashes do cotidiano em mínimas pinceladas de palavras. Aqui, o poeta recupera haicais de Satori Uso, poeta nipo-brasileiro (1925-1885). Atentemos para este ramalhete de pequenas ações cotidianas: “haicais, bitucas, recados / o acaso em cada bolso / do casaco”. Ou esta macro reflexão num tiquinho de imagens: “nem dentro, nem fora / neste canto do jardim / sou uma sombra de mim”. A palavra “canto” funciona com substantivo e verbo. Como verbo, reverbera-se musicalmente em “SOMbra”. O par dentro-e-fora reflete a imagem que se espelha no som. Música, imagem e palavra: fina poesia.
Na terceira parte diálogos são travados com autores como Horácio, Poe, Graciliano Ramos, entre outros. Cito “Poetílica eliterária” com a observação “depois de Drummond”: “O poeta do momento / cutuca com vara curta / o poeta em tempo integral. // Enquanto isso o poeta fofo / assassina mais um poema”. E agora “Homo literatus” com a observação “depois de Oswald”: “No mundo literário / A prova dos nove / Não é nenhuma alegria / E vem com um receituário: / Não fala que promove”.
Nos dois casos o poeta faz uso feliz da paródia. No primeiro, enquanto “canto paralelo”, na mesma ótica do poema do Drummond. No segundo, enquanto zombaria, a partir do repertório antropofágico-oswaldiano.
     Salve Rodrigo Garcia Lopes e a volta de sua extraordinária poesia. Experiências extraordinárias é um grande livro.


Publicado pelo jornal CONTRAPONTO, João Pessoa-PB. Caderno B, coluna Augusta Poesia, dia 29.05.2015, p. B-7.

Resenha de "Experiências Extraordinárias" por Daniel Zanella


Experiências Extraordinárias apresenta uma nova relação entre os fenômenos midiáticos e a poesia


POR DANIEL ZANELLA

     A poesia, o ato de preencher a linguagem com significados, está para a interpretação do mundo assim como a água está para a seca, exercício de resgate. Experiências Extraordinárias, último livro do londrinense Rodrigo Garcia Lopes, é um caso raro de clareza intelectual com rigor e método: precisão aliada a sentimento.

(Força na aguadura, distanciamento do que é turvo.)

     A obra é dividida em quatro eixos bem amplos. Em “Idade Mídia”, os temas contemporâneos são questionados na balança fumegante entre civilização e barbárie; “Satori Uso” é uma compilação de haicais, também nome do heterônimo criado pelo poeta na década de 1980; “Diálogos” é um passeio pelo percurso intelectual-artístico do autor, com suas referências à mostra; e “Experiências Extraordinárias” é um apanhado de poemas livres. Os núcleos quase extremos se conversam e denotam a versatilidade de Garcia Lopes, também compositor, tradutor, editor e jornalista.
     A obra foge do palavreado nebuloso, de uma certa alma trapaceira muito em voga na poesia contemporânea – quando o autor deixa no leitor a desconfiança de que ou escreveu algo muito genial ou foi apenas confuso, algo que realmente não acontece aqui. “Querido pensamento,/ nunca fomos tão nós/ quando estivemos a sós/ no instante de seu advento.” é dito em “Solilóquio”.
De modo geral, a curvatura metodológica de Experiências Extraordinárias transita entre a tradição literária – os mitos, a literatura oriental, França, as glórias do mundo – e a elaboração de um tipo de leitura para o novo, quando o poeta se coloca na condição de tradutor. Aqui, a cultura pop se apresenta num campo onde o erudito não a anula. A primeira sequência de 14 poemas desvela isso; vozes para entender o imediato:

Tempos de Celebridade
Carlos, na próxima encadernação
Nascerei filho de alguém famoso.
E então, como um cão raivoso,
Não largarei meu precioso osso.

Quem disse que é preciso ler,
Ter talento? Não seja ridículo.
Esforço é coisa de otário.
Meu sobrenome será meu currículo.

Vou escrever uns poemas fofos
Umas cançõezinhas ordinárias
Com uma certeza: o Brasil nunca saiu
Das capitanias hereditárias.

     Garcia Lopes corre alguns riscos. Ao se aventurar em um terreno crítico/sonoro, ele soa, em alguns momentos, quase como tribunal de redes sociais, principalmente na sequência em que parodia formatos jornalísticos para autores clássicos. “DJ Marcel Duchamp curte balada em Jurerê Internacional”, diz em um trecho de Famosos (I). A busca por ser integrante de seu tempo também cobra seu preço, que o autor não se nega a pagar.
    Porém, a aplicação conferida ao cotidiano, àquilo que está boiando na superfície em busca de sentido poético e é recuperado, impede que a obra se perca no próprio fluxo de acidez. Em “Guarujá Salem”: “linchada por um boato/ numa tarde de sábado/ mundo-barbárie// fabiane// ainda ergue a cabeça/ para um último olhar/ à multidão de agressores// filmando com celulares/ e smartphones”.
Sem semear espinhos, Experiências Extraordinárias ambiciona, sim, uma certa juventude eterna, assentar-se como espírito de um tempo. Não é um livro pequeno, individualizante, parido para ser mais. Em “Império dos Segundos”, há o aprofundamento das noções contemporâneas de tempo, a fugacidade toda da matéria que absorve os dias, o fluxo inesgotável, perene. (O poeta como um revelador, transmissor e registrador dos pensamentos):
     “Se eu fosse parar pra saber/ o sabor deste instante/ não iria jamais perceber/ do que é feito o durante,// a carne de cada segundo, / minuto de cada poente/ de que é feito este mundo, / sangue, esperma, poeira,// não ia jamais me lembrar/ da trama da tarde, museu/ onde moram as velhas horas,/ nem o duro rosto deste outro// outono, matéria, mistério,/ nem a memória, esse mármore/ em fluxo, rugido em estéreo/ de uma incessante cachoeira.”
    A poesia de Rodrigo Garcia Lopes é bela e funciona. Atravanca o caminho, mas descongestiona. É o poeta como um cientista de sensações, em busca de responder (com a cabeça e o coração) à fome absoluta dos dias.

Estante
Rodrigo Garcia Lopes
Experiências Extraordinárias
Kan editora, 104 páginas, R$ 35
A obra pode ser adquirida na livraria da Escola de Escrita, localizada na Rua Riachuelo, 427, Centro, Curitiba ou pelo contato@escoladeescrita.com.br.
O autor ministrará na Escola, a partir de março, a Oficina de Criação Poética, também denominada Experiências Extraordinárias. As inscrições podem ser feitas aqui e aqui.

Escape para a leitura


_____

A história da Lua



Ela, velha
                  lanterna chinesa
                                             translúcida

(Cor de crânio
                               quase a explodir)
                                                                    flutua – Lua:

Escudo de batalha,
                                  hóspede do céu,
                                                               cesta de damas-da-noite:

Quantas marcas de passado
                                                  em suas feridas, fissuras,
                                                                                                 cicatrizes?

1969, Armstrong te largou aí,
                                                 depois de pisar e pular
                                                                                        em suas crateras.

Até hoje dizem
                             que tudo não passou
                                                                             de pura encenação.

Cientistas se debatem
                                       sobre o mistério
                                                                    de sua composição

E ainda assim, com essa cara
                                                     de máscara de Nô,
                                                                                      você nos olha.

Li Po te esperou aquela noite
                                                          no Rio Amarelo.
                                                                                          Ele só queria abraçá-la.

Méliès (1902) abusou
                                       de sua inocência
                                                                     em Le voyage de la lune

Enquanto egípcios
                                        a tiveram, Chonsu,
                                                                             em altíssima conta.

Artemis, Chandra, Jaci.
                                           Deusa branca,
                                                                       Senhora do Oriente,

A memória colhe
                                 outros nomes
                                                          em seu passeio noturno:

Bombardeada pelo sol,
                                          o que fascina
                                                                   é sua face oculta:

Capuz de velha bruxa,
                                       perita no disfarce
                                                                          de suas fases.

Este o nascer da Terra
                                      visto de sua praia cinza e sem mar,
                                                                                                  onde som nenhum se propaga.

Estéril concubina, espelho solar,
                                                           satélite inútil
                                                                                      suspenso no enigma.

Certa noite de verão
                                          Sokan lhe pôs um cabo
                                                                                   e tornou-a um esplêndido abano.

Lua que desce à terra
                                             e se mistura

                                                                       com o sonho dos homens.