quarta-feira, fevereiro 27, 2008

BAZAR POPULAR

Quem vê cara está cheio

E as paredes têm antes

quem tem boca tem ouvidos

devagar eu lhe direi quem és

longe dos olhos, dois voando

os rios correm para todos

nunca diga abrantes

antes mal que só acompanhado

quem nunca comeu as aparências

de muito riso nasce a luz

agora é que cedo madruga

para quem sabe ler acompanhado

o olho que não beberei

o vento leva a tempestade

onde há fumaça há muito riso

o pouco boa sombra o cobre

começar o que não quer ver

a idéia coçando, roçando o ser

quem não se coça nunca vai saber


domingo, fevereiro 24, 2008

SEDONA II



Seguindo a trilha

dentro da mata

tudo o que fica no caminho -

pista, texto, traço:

mancha de sangue em folha caída

pegadas de pássaro na areia

de um riacho.


Círculos na água

fumaça de cigarro

galhos, quebrados

troncos com grafites, saliva

numa lâmina de grama.


Estas pegadas:

“um animal selvagem esteve aqui”.







(De Polivox, Editora Azougue, 2001)

segunda-feira, fevereiro 18, 2008

Proustianas



Se um pouco de sonho é perigoso, a cura para isso não é sonhar menos mas sonhar mais, sonhar o tempo todo.

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Uma mudança no clima é suficiente para recriar o mundo e a nós mesmos.

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A verdadeira viagem consiste não em procurar novas paisagens mas em ter novos olhos.

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Percebi que para expressar aquelas impressões, para escrever aquele livro essencial, que é o único que é verdadeiro, um grande escritor não é o que inventa, no sentido corrente da palavra, mas, posto que ele já existe em cada um de nós, o interpreta. A obrigação e a tarefa do escritor são as de um intérprete.

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O livro que, entre todos, é o mais difícil de interpretar, é o único que a realidade ditou, o único impresso em nós pela própria realidade.


MARCEL PROUST
(tradução: Rodrigo Garcia Lopes)

quinta-feira, fevereiro 14, 2008

CORRESPONDÊNCIAS

A natureza é um templo onde vivos pilares
Às vezes deixam escapar enredos insólitos;
O homem passa por esta floresta de símbolos
Que os espiam com seus olhos familiares.

Como ecos profundos que longe se confundem
Numa sombria e profunda unidade,
Vasta como a noite e a claridade,
Sons, cores e perfumes se correspondem.

Aromas frescos como a carne dos infantes,
Doces como oboés, verdes como a campina,
E outros, devassos, ricos e triunfantes,

Trazem em si a fluidez das coisas infinitas,
Âmbar, almíscar e incenso confundidos
Cantando o transporte do espírito e dos sentidos.



Correspondances

La nature est un temple de vivants piliers
Laissent parfois sortir de confuses paroles
L'homme y passe à travers des forêts de symboles
Qui l'observent avec des regards familiers.

Comme de longs échos qui de loin se confondent
Dans une ténébreuse et profonde unité,
Vaste comme une nuit et comme la clarté,
Les parfums, les couleurs et les sons se répondent.

Il est des parfums frais comme de chairs d'enfants,
Doux comme les hautbois, verts comme les prairies,
—Et d'autres, corrompus, riches et triomphants,

Ayant l'expansion des choses infinies,
Comme l'ambre, le musIc, le benjoin et l'encens,
Qui chantent les transports de l'esprit et des sens.


Charles Baudelaire
(1821—1867)

Tradução: Rodrigo Garcia Lopes


terça-feira, fevereiro 12, 2008

6 MOVIMENTOS DE CÂMERA (poema de Nômada)

travelling



Os jardins do olho se propelem

à velocidade do tempo ele confere

o além de sua própria pele

entre tatuagens de fome. Se atreve

em insistir sentir dor, algum

odor de penhasco ou penumbra

no corpo em silêncio que se afasta

enquanto penetra sua própria face.




close



Num segundo a flor se fecha

como dedos

no vazio de seu segredo.




plano americano



Carregamos o corpo, frágil sopro em movimento.

Criança, dois traços verticais eram pessoas.

Imagens se abrem, vazias, como biombos.

O que estava escrito na grama dos eventos.

Chegamos aqui, no entanto estamos em movimento.




contraplongée



Rebatimento de luz, rouca

voz no espelho como ausência de silêncio

que não existe, bolhas na superfície

dessa face, água tão pouca.




plano fixo



Música da facelíngua dos dedosdesejo pelo que não existe mais.




zoom



A um passo de passado, paraíso:

O que se move é o percebido

(formiga na folha de capim

dedos roçando o corpo morno

bem-te-vi furando o silêncio da manhã

o vôo do pequeno falcão

o verde visível tremulando contra o azul

sua face inclinada olhando a parede)

As coisas existem agora porque estamos aqui.

Quando não estivermos mais, continuarão existindo,

Mas sem seu amante para lhe dar ainda mais sentido.

Os instantes, sem as coisas, não são nada.

Pássaros debandam, não sei como chamá-los.

A voz, admitindo fracasso, se afasta mas deixa seus rastros.




sábado, fevereiro 09, 2008

FUGAZ


FUGAZ


Passagem por uma paisagem,

lugar do onde, do ontem, do quando,

quantas palavras ficaram faltando

na boca cheia de imagens.


O outro é aquele que ficou a margem,

no espanto de um pronome,

no corpo de uma brisa suave;

o outro é como uma fome,

pluma à deriva, à distância, ou quase.


Estranho em sua própria viagem,

garrafa com uma mensagem,

olhar durando numa flor,

sem nome, secreta, selvagem.


Desterro, água bebida num trem,

peça incompleta, festa adiada, vertigem,

a cabeça sempre em alguém:

eu outro, eu todos, ninguém.




Rodrigo Garcia Lopes, poema de Visibilia (Travessa dos Editores)

sexta-feira, fevereiro 08, 2008




"O vento não ouve a si mesmo mas nós o ouvimos. Os animais se comunicam entre eles mas nós falamos a sós com nós mesmos e nos comunicamos com os mortos e com os que ainda não nasceram. A algaravia humana é o vento que se sabe vento, a linguagem que se sabe linguagem e pela qual o animal humano sabe que está vivo e, ao sabê-lo, aprende a morrer."

OCTAVIO PAZ

domingo, fevereiro 03, 2008

RALPH TOWNER TOCA "TOLEDO"


Ralph Towner é um monstro. Aqui ele toca a maravilhosa "Toledo", música sua. Olha só o que este músico é capaz de fazer. Técnica e emoção:


http://www.youtube.com/watch?v=xvLSr5lXEko

sábado, fevereiro 02, 2008

"M"


Este poema foi escrito em Londres, quando vivi lá, no século passado (1984 e 85, para ser exato), no bairro Shepherd's Bush, e no filme Disque M Para Matar, do Hitchcock, cineasta que adoro. De tarde e começo da noite trabalhava como ilegal (ajudante de cozinha e lixeiro) num restaurante francês do lado da Ópera, em Covent Garden. E de noite ficava bebendo uísque, conversando com meus colegas de apê e escrevendo. Bons tempos. Tudo parecia um filme. O poema tem um clima de história de detetive e um tom de urgência que gosto muito. Para quem não conhece, saiu no livro Solarium (editora Iluminuras, em 1994). Divirtam-se:


“M”


1


Improvisação pessoal.

Essa noite sou um jazzman

com dentes de ouro & swing

pra raiar o dia.

Troco a mobília de dentro, só,

pra ver como ficamos.

Táxis negros dão rasantes

sobre suicidas.

Sou apenas um fantasma clandestino

procurando o que beber

nessa noite fria.

Amo a lua, submisso,

embrulhado num lençol chinês.

Spyder-man tecendo

essa novela de personagens

tão confusas.

Desarrumo tudo.

Paciente,

espero os ilustres convidados que, eu sei,

não vão chegar.


2


Descendo pels escadas de emergência

do maior edifício do mundo.

Escuro.

A idiota que eu amo está lá em cima,

dormindo, suando frio,

morrendo um pouco. Pego o fone.

O silêncio com seu cínico sorriso.

Não importa: minhas mãos

negras, negras,

tremem como coelhos.

Digo: “É mesmo impossível sentir frio

Com esses cobertores alemães”.

Kris quebrou a perna,

o indiano da quitanda teve um filho

o resto são arrependimentos

terríveis de serem sentidos”.

(Mas me amarro nos mastros

de alguém que é um naufrágio.

Destroços de ondas que a corrente leva,

Orgulhosa).


3


Misteriosas vozes escapam

do esgoto.

Bêbados brigam por uísque.

Ratos fogem, nojo.

Um rádio toca Vivaldi.

O casal ao lado espanca-se,

em silêncio.

Tomado pelo pânico

tropeço em gatos amarelos

perdido em minha própria obsessão.


4


Ouço passos apressados

A mil degraus.

Vem subindo alguém,

Como uma febre, alguém que se quer muito.

A Loucura arromba a porta.

Revira os olhos. Vasculha a sala.

Vidraças, aos gritos, se atiram lá de cima.

Com um canivete enterrado nas costas

Ainda disco o último número.




Rodrigo Garcia Lopes


De Solarium (Iluminuras, 1994)


sexta-feira, fevereiro 01, 2008

Palavras Mágicas, de NALUNGIAQ

Palavras Mágicas/ (segundo Nalungiaq)/ Esquimó

Em tempos ancestrais

quando pessoas & animais viviam na terra,

uma pessoa podia virar um animal se quisesse

e um animal podia virar um ser humano.

Às vezes eram pessoas

e às vezes animais

e não havia diferença.

Todos falavam a mesma língua.

Naquele tempo as palavras eram mágicas.

A mente humana tinha poderes misteriosos.

Uma palavra dita ao acaso

podia ter conseqüências estranhas.

De repente ela ganhava vida

e o que as pessoas queriam que acontecesse, acontecia.

Só o que era preciso era dizer.

Como explicar isso?

As coisas eram assim.

(De "Shaking the Pumpkin", antologia de Jerome Rothenberg

Tradução: Rodrigo Garcia Lopes

Fonte: In Knud Rasmussen, The Netsilik Eskimos, Report of the 5th Thule Expedition, Copenhagen, 1931.

Nota: “A xamateca Nalungiaq definia-se como “uma mulher comum”, tendo aprendido o poder das “palavras mágicas” (= poesia) com um tio, também xamã. O comum era não usar a fala ordinária e sim a linguagem dos xamãs, em que todas as coisas & seres eram chamados por nomes diferentes do que eram conhecidos. A consciência esquimó é notável por sua compreensão do processo poético básico”. (Rothenberg, SP, 405)