sábado, setembro 30, 2006

terça-feira, setembro 26, 2006



O grande Jack Kerouac

Uma página da caderneta de anotações de Kerouac.

HAIKUS DE JACK KEROUAC

Nem todo mundo que é chegado na obra de Jack Kerouac sabe que ele era um exímio haikaísta, dominando com maestria este tipo de poema sutil, conciso ao extremo, e encharcado de visão de vida zen-budista. Segundo Ginsberg, Kerouac foi um dos maiores praticantes do gênero nos Estados Unidos. Não é a toa que vários de seus livros estão pontilhados de haikus. Pode-se dizer que ele é um dos inventores do haikai americano, que ele preferia chamar de "pop haiku". Aqui vai uma pequena amostra dos haikerouacs:


**


Cruzando o campo de futebol
voltando do trabalho,
O empresário solitário

Crossing the football field/ Coming back from work,/ The lonely businessman


*


Hoje nenhum telegrama
— Só mais folhas
caindo na grama


No telegram today/-- Only more / Leaves fell


*


As solas dos sapatos
limpas
de andar na chuva


The bottoms of my shoes/ are clean/ from walking in the rain


*


Tentando estudar os sutras
o gato deita na página
Dizendo me escuta

Trying to study sutras,/the kitten on my page/Demanding affection



*

Inútil, inútil,
pancada de chuva
em direção ao mar.

Useless, useless,/the heavy rain/Driving into the sea


*


O sabor
da chuva—
Por que ajoelhar?


The taste/ of rain—/ Why kneel?


*


A lua ganhou
um bigode de gato,
Por um segundo



The moon had/ A cat´s moustache,/ For a second



*


Uma gota de chuva
desabou do teto
na minha cerveja


A raindrop from/ the roof/ Fell in my beer



*


Noite perfeita de lua
arruinada
Por brigas de família


Perfect moonlit night/marred/ By family squabbles


*


As flores nem ligam
pro otário
sol de maio


The flowers don’t seem/ to mind/ the stupid May sunshine



Tradução de Rodrigo Garcia Lopes

(Do livro Book of Haikus. Edited and with an Introduction by Regina Weinreich. New York: Penguin Books, 2003)

CEREJAS

cerejas
podem

parecer
amargas

se você nada sabe
do solitário sabor

experimente-as
antes

quando
ainda

forem
flores


(De Solarium, 1994)

sábado, setembro 23, 2006

OSTRANENIE, a road poem

Pego nessa estranha lógica do mundo
Peço carona para a família de malucos
Que tem como hobbies mais esdrúxulos
Não contar as horas, só contar os cucos,
Trocar beijos como quem troca socos,
Praguejar como um bando de marujos
E tomar na cara achando que é soluço.
Perguntam a meu nariz se estamos juntos
Rasuram paisagens, comem presunto,
Depois falam falam falam como loucos
Até ficarem sem voz e sem assunto.
Desço, em algum antigo vilarejo russo.

sexta-feira, setembro 22, 2006

quinta-feira, setembro 21, 2006

RITO

Alertas, trapaças, cobranças, compromissos:
Quantas ilhas sem edição, vidas sem viço,
A morte visita sem aviso?
E, afinal, pra que mesmo tudo isso?

O que deu nesse mundo, caduco,
O que ficou do tempo em que viver
Era mais que só mudar de assunto
Era rito, um estado de espírito?

Ou quando olhar era uma reza,
Pensar que revelava a leveza,
Música vindo de dentro
(Precisa de centro?)

Uma revolução do sentir nos fez ateus:
Quisemos então ver a face de Deus.

E você a meu lado, lembra
De quando bastava uma fagulha
Pra explodir uma Bastilha?




(De Nômada)

terça-feira, setembro 19, 2006

segunda-feira, setembro 18, 2006

A MILÉSIMA SEGUNDA NOITE

Diferente de todos os seus antecessores, Al Nija trazia o terror entranhado em cada traço de sua persona: sua capacidade de sumir, assim, como quem nem. E reaparecer.
Ponderado em suas decisões, tomava de assalto o deserto de Sefira, queimava os portos de Kólophon. Tudo era signo. A tomada era lida como uma necessidade prevista no Livro, o incêndio uma ação preventiva, a decisão ela mesma uma miragem. Não importava que as provas fossem forjadas. Com o rosto de nuvens pisadas de sangue, aquilino olhar de mar morto, Al Nija se concentrava no único incidente daquela tarde digno de notícia: restos de fuselagem diabólica passando em câmera lenta sobre a muralha cruzando a moldura dos olhos. Trepanados anjos de metal trucidavam sua mente com o ódio a seus antecessores, aos séculos, e as memórias de Ishtar, o atentado em Ogirdor, a vitória em Kabal, a percepção na tomada de Basra, se misturavam como se fossem um único acontecimento. Al Nija sofria. Eram.
Reaparecido num canto de uma biblioteca pública no Cairo, transmutado num luxuoso volume de mapas chineses, Al Nija não parecia mais um homem. Longe disso. Quem o folheasse veria no que ele havia se transformado: um cenário. Pedras e vales, onde alguém veria um nariz. Céu de silk-screen, onde outrora seus gestos. Cavernas, oásis, no lugar de falo e olho. As traças telepáticas fizeram o resto, porque era preciso acionar a rede antes de sumir novamente, era preciso checar os dados de Hassan, o grande mestre. Este, mestre, tinha, assim como Al Nija, notável traço: quase não se percebia nada, distinguia um vazio de uma camuflagem, cartilagem muito bem urdida, camuflagem essa que fosse o próprio real. Invisível. O ataque era sempre certeiro. As gravações eram feitas sempre antes dos eventos, o que poupava um tempo. Nisso eram especialistas, os dois, sim, porque em tempos não se distinguia mais Hassan de Nija, Nija de Hassan. Assim, recém, eram espelhos que se matavam com seus reflexos infinitos.
Reaparecido numa traça telepática em Kólophon, sobre a cartilagem da muralha das memórias de Basra, com o rosto biblioteca de nuvens silk-screen e feição de caverna chinesa, Nissan se concentrava num volume trucidado de ação preventiva, fuselagens de sangue e o terror de sua capacidade de cenário, voltar a ser o próprio branco em seu deserto, a camuflagem de seu signo e sangue, diferente de todos os seus reflexos infinitos.


(De Nômada)

domingo, setembro 17, 2006

AUTO-RETRATO ÀS DUAS HORAS DA MANHÃ, dia 29 de agosto, 1959

Sentado em frente à máquina de escrever. Folheando
uma história de detetive. Perto do final
Descobri o que você já sabia;
A secretária de face macia e de barbas imensas
É a assassina do senador
E o amor do jovem sargento membro da comissão de homicídio
Pela filha do almirante será recíproco.
Mas você não vai omitir nem uma página.
Às vezes enquanto vira a folha você lança um rápido olhar
Sobre a página em branco na máquina de escrever.
Quer dizer que evitaremos isso. Pelo menos isso.
No jornal: em algum lugar uma cidade foi
Arrasada por bombas e reduzida a ruínas.
Que mal, mas o que posso fazer por vocês.
O sargento está prestes a evitar um segundo assassinato
Embora a filha do almirante ofereça (pela primeira vez!)
Seus lábios pra ele, negócio é negócio.
Você fica sem saber quantos morreram, o jornal sumiu.
No quarto ao lado sua esposa sonha com seu primeiro amor.
Ontem ela tentou se enforcar. Amanhã
Vai cortar os pulsos ou sei lá o quê.
Pelo menos ela tem um objetivo em mente
E ela vai chegar lá, de um jeito ou de outro.
E o coração é um cemitério espaçoso.
A história de Fátima no Notícias da Alemanha
Estava tão mal escrita que eu cai no riso.
É mais fácil entender a tortura que a descrição da tortura.
A assassina caiu na armadilha
E o sargento abraça sua recompensa,
Sabendo que agora você já pode dormir. Amanhã é um outro dia.



HEINER MÜLLER
(Tradução: Rodrigo Garcia Lopes, com a colaboração de Simone Homem de Mello)

sábado, setembro 16, 2006

O QUE VOCÊ DEVIA SABER PRA SER UM POETA

tudo que puder sobre animais, pessoas.
nomes de árvores e flores e ervas.
nomes de estrelas, e o movimento da lua
e dos planetas.

seus próprios sextos sentidos, com uma mente ligada e elegante.

pelo menos um tipo de mágica tradicional:
adivinhação, astrologia, o livro das mudanças, o tarô;

sonhos.
os demônios ilusórios e os deuses ilusórios e brilhantes;

beijar o cu do demo e comer merda;
foder seu pau farpado e tarado,
foder a bruxa,
e todos os anjos celestiais
e donzelas perfumadas e douradas –

& então amar o humano: esposas maridos e amigos.

jogos infantis, gibis, chiclete,
a piração da propaganda e da TV.

trabalho, longas horas de trabalho chato engolido e aceito
e convivido e enfim amado. Cansaço,
fome, descanso.

a liberdade selvagem da dança, êxtase
silente e solitária iluminação, êntase

perigo real. jogos. e o gume da morte.



GARY SNYDER
(tradução:RGL)


O poeta, escritor e pintor norte-americano Edward Estlin Cummings, um dos gênios da poesia do século 20.

em algum lugar que eu nunca visitei, felizmente além

em algum lugar que nunca visitei, felizmente além
de qualquer experiência, seus olhos retém o seu silêncio:
nos seus gestos mais frágeis há coisas que me encerram,
ou que não posso tocar porque estão perto.

seu olhar mais breve me desabrocha feito pétalas
mesmo que eu sempre me feche como dedos,
você me abre sempre, pétala por pétala, como a primavera abre
(tocando sutilmente, misteriosamente) sua primeira rosa.

ou se seu desejo fosse estar perto de mim, eu e
minha vida encerraríamos com beleza, de repente,
como quando o coração dessa flor imagina
a neve descendo docemente em todos os lugares.

nada do que eu possa perceber neste mundo é igual
à força de sua intensa fragilidade: cuja textura
me mistura com a cor de seus campos,
retribuindo a morte e o eterno a cada sopro

(não sei dizer o que há em você que se fecha
e se abre: só um pedaço de mim compreende que a voz
de seus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas



e. e. cummings
Tradução: Rodrigo Garcia Lopes

sexta-feira, setembro 15, 2006

TESTEMUNHO, poema de Paul Auster

No trigo alto do inverno
que nos levou através
dessa terra de ninguém,
nas cópulas de nossa raiva
sob essas ervas brancas sem nome,
e por hospedar, perpetuamente,
uma flor no inferno, falarei a você
do abrir de meu olho
para além do ser,
de meu ser além do ser
só alguém,
e como poderia absolvê-la
desse segredo, e provar pra você
que não estou mais só,
que não estou
nem mesmo perto
de mim.



(Tradução: Rodrigo Garcia Lopes)

GÊNESIS

Há em você um silêncio que escuto

Um céu que vejo enquanto juntos,

há um amor que se parece com tudo, menos susto,

há uma mente & um corpo no vazio dessa paisagem

(quanto teu rosto, viagem, ressurge nos tremores da miragem)

ou quando a toco, ou quando em pensamento a toco,

como um sopro,você mesma, que amo, enigmagem.

E há uma chuva que cai só uma vez por ano.

Há o sibilo misterioso da serpente.

E há seu beijo

que há de me fazer humano.

quinta-feira, setembro 14, 2006

Leaves of Grass Forever


Já está saindo, 9 meses depois do livro ter sido lançado, a terceira edição da minha tradução de Folhas de Relva (1855) , do Walt Whitman, pela editora Iluminuras. Bom saber que o vehinho continua atual e sendo lido pelas novas gerações.

MEDO E O MACACO, poema de William S. Burroughs

Coceira irritante e o perfume da morte
No sussurrante vento sul
Cheiro de abismo e nada
O Anjo Vil dos vagabundos uiva pelo apartamento
Como um sono cheirando a doença
Sonho matutino de um macaco perdido
Nascido e sufocado por velhas fantasias
Com pétalas de rosa em frascos fechados
Medo e o macaco
Gosto amargo de fruta verde ao amanhecer
O ar lácteo e picante da brisa marinha
Carne branca denuncia
Teus jeans tão desbotados
Perna sob sombras do mar
Luz da manhã
No néon celeste de um armazém
No cheiro do vinho barato no bairro dos marujos
Na fonte soluçante do patío da polícia
Na estátua de pedra embolorada
No molequinho assobiando para vira-latas.
Vagabundos agarram suas casa imaginárias
Um trem perdido apita vago e abafado
No apartamento noite gosto d'água
Luz da manhã em carne láctea
Coceira irritante mão fantasma
Triste como a morte dos macacos
Teu pai uma estrela cadente
Osso de cristal no ar fino
Céu noturno
Dispersão e vazio.



Tradução: RGL e Maurício Arruda Mendonça

(Em Vozes & VIsões: Panorama da Arte e Cultura Norte-Americanas Hoje, Editora Iluminuras, 1994)

William S. Burroughs, padrinho deste blog, El Hombre Invisibile

BLACK HOLE


O ponto é um buraco negro.
O ponto é um buraco negr.
O ponto é um buraco neg.
O ponto é um buraco ne.
O ponto é um buraco n.
O ponto é um buraco.
O ponto é um burac.
O ponto é um bura.
O ponto é um bur.
O ponto é um bu.
O ponto é um b.
O ponto é um.
O ponto é u.
O ponto é.
O ponto.
O pont.
O pon.
O po.
O p.
O.
.

Peter Ciccariello, Imaginal Landscapes, Fourth View (2006). Fazia tempo que eu não via um trabalho tão interessante em poesia visual. No blog do Geof Huth, http://dbqp.blogspot.com

AMORES BRUTOS

Que um beijo nos transe
Outro ser, além, nos dance
Onde a memória não alcance
O abismo do fim e seu lance.

Que este beijo não seja o bastante
Nem que me despedace
Olho do sol que franze
E que nos sangre

(O medo desse querer
Caminhos rompendo o éter
Da dor, polidor, refém
Do milagre de ser
Outra pessoa e alguém.)

Que química imita
A raiva do seu amor?
Que física duplica
Essa faísca de horror?

Que se apaguem
Nossos erros e motivos —
Toda lágrima consagre
Apenas estar vivo,
Este milagre.


(De Nômada)
“Nenhum poema pode brotar da crença de que já existe uma linguagem que vincula coisa com coisa: é um ainda-não de uma linguagem que ainda temos que descobrir e criar: a fome de utopia — de lugar nenhum. Como se, desse ponto zero, pudéssemos enfim prosseguir e descobrir onde estamos”.
Paul Auster

ZEITGEIST

Nocauteando celebridades disfarçadas de pingüins
Monitorando a muvuca das transações e trapaças alpinistas
Serpenteando entre escadarias cravejadas de citações
Chutando o balde do crepúsculo com o bebê da aurora dentro
Chegando firme na dividida com a mentira, pisando o calo da calúnia
Colecionando estoques de paciência e delatores pederastas
Beliscando morenas de fiberglass e pixels de altíssima definição
Pegando marqueteiros pela orelha, levando o bispo milionário pelo pescoço
Mostrando seu catálogo de golpes de jiu-jítsu para web designers
Apavorando editores de moda com crucifixos de merda
Partindo pra ignorância pra cima das floriculturas
Esfaqueando a manhã e as boas intenções com sua adaga afiada
Pulverizando jogadores de genoma e modelos chipadas
Dando geral nos arquivos adulterados dos tribunais de justiça
Assaltando pipoqueiros metafísicos e banqueiros artistas de fim de semana
Distribuindo pirulitos de ácido para críticos literários
Arrebentando a boca da razão com denúncias inconseqüentes
Estrangulando docemente a tarde carregada de câmeras de vídeo & trance music
Pregando a irresponsabilidade fiscal, e anthrax para todos,
Rifando o shopping lotado de idéias fixas com um grito de jihad
O homem-bomba entra no poema.


(De Nômada, Lamparina, 2994)