segunda-feira, março 31, 2008

ALGUMAS PÉROLAS DO "CATATAU", DE PAULO LEMINSKI

Esses dias estive relendo, por conta de um texto que tive que escrever, o catautônico Catatau, de Paulo Leminski. Sem dúvida um dos livros mais doidos e vertiginosos da literatura brasileira, tour de force que demorou nove anos para ser escrito. Como definir o tal do Catatau, esta brincadeira séria de linguagem, este livro de alta voltagem paratática e anti-narrativa, que explora os limites e possibilidades da língua portuguesa e bagunça a fronteira entre os gêneros literários, entre sentido e não-sentido, alta cultura e cultura pop? Logo escrevo mais sobre o livro neste Estúdio. Seguem algumas pérolas resultantes da pescaria.


Esta é a capa da primeira edição, às próprias custas, de 1975:



ÔPS! ESTA é a verdadeira capa:


E estas duas são da Sulina (esgotada) e a mais recente, da Travessa dos Editores:




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Dentro de poucos instantes não vai acontecer nada, tomem cuidado.


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O problema com o mundo dito exterior, vulgo realidade objetiva, é que não faz distinção entre tanto e tanto faz.

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Toda pérola tem seu dia de ostracismo.

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Nunca fui aí. Joça posso com juçara, mas aposto que quem jaguara jagunço com bagunça de taquara eu jurara que não fosse tanajura na chula taba de Guardalajarra!

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O poliglota analfabeto, de tanto virar o mundo, ver as coisas e falar os papos, parou para pensar ao pé de uma montanha. Assaltaram-no dois pensamentos. Um na língua materna, outro em língua estrangeira. O primeiro fez a pergunta, o outro respondeu. Resultado: sou pai de minhas perguntas e filho de minhas respostas”.

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Nada como um ano dentro de um dia, nada como a eternidade num lugar.

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A pressa é a mãe do precipício.

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Se o Brasil fosse holandês, ninguém entenderia batavina.

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O pensar emite espetáculos.

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Falta pouco, e até este pouco está fazendo falta.

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Para dó, qualquer sol bemol é quinta diminuta.

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A bom entendedor, em meados de palavra, estamos entendidos.

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Bizarros tempos estes em que uma fábrica pouco maior que uma caixinha de música faz todo o ofício do entendimento humano!

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Dia virá em que se ponham altares a um deus-máquina, —

Deus, a máquina de uma só peça.

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Como era mesmo o nome daquele rio de quem diziam horrores da amnésia que dava na hora da senha, bebiba sua água? Não brinca...Mesmo? Que bom, mamãe, olha, estou órfão! Quem vai embora, não embolora.

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Tudo feito, nada dito; estamos feitos.

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Tão mal falado que quando a fama chegava já estava difamado.

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Não interpresto meus monstros por nenhum ouro deste mundo.

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Não é possível dizer essa frase com essas mesmas palavras.

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Quando se come é que se vê como a natureza foi sábia em colocar o boi no prato e o homem na cadeira.

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Ocaso do sol do meu pensar.

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Dou teu caminho, um pedaço de mal tamanho.

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Quem reza fala palavras que desconhece para um parceiro que nunca viu a fim de resolver um problema mal equacionado.

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Depois de um caminho que não era para se demorar, o peso do deserto do mar.

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Criarem o mundo abriu inaudito precedente de incalculáveis conseqüências efetivas.

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Livro, já estiveste dentro de um sonho e te fiz para despertar porque o sol é melhor que o sonho! Desconfio da dúvida, incorro numa certeza: zombo de esquecimento.

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Alma, entra dentro de ti mesma, o alvo não passa de um espelho.

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O gorila olha o espelho e vê Descartes, Cartesius recua o gorila, e pensa, desgoralizando-se rapidamente.

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Quem fala? Muitas vozes falam dentro da minha cabeça mas a voz, só minha.

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Outra vida, que esta não está dando para o gasto.



PAULO LEMINSKI em CATATAU

quinta-feira, março 27, 2008

POLIVOX NO YOUTUBE


Há tempos tava querendo postar no Youtube alguns trechos do show Polivox, que fiz dentro do projeto "Outros Bárbaros" (idealizado pelo Ademir Assunção), no dia 18 de agosto de 2005, no Itaú Cultural, em São Paulo. Agora o amigo e poeta Marcelo Montenegro (valeu, Martcheelo!) me quebrou esse galhão. A câmera não é boa, o som não é lá essas coisas, mas pelo menos ficou o registro de alguns momentos.

Comigo estão o André Vercelino (percussão) e o Marco Scolari (acordeon e teclados).

1. FUGAZ (poema e música de Rodrigo Garcia Lopes) abre a apresentação:

http://www.youtube.com/watch?v=7P_PWN-gjWU


2. ZEITGEIST (Rodrigo Garcia Lopes):

http://www.youtube.com/watch?v=xGrTQIWkR1s&feature=related


3. O NAVEGANTE (trecho inicial do poema anônimo anglo-saxão, tradução e trilha de Rodrigo Garcia Lopes (Lamparina, 2004).


4. O ASSINALADO (de Cruz e Souza, música de Rodrigo Garcia Lopes):

http://www.youtube.com/watch?v=WQBOFnTRHMc


5. A SOLIDÃO (poema e música de Rodrigo Garcia Lopes):

http://www.youtube.com/watch?v=ANV1_H7oGJA&feature=related


terça-feira, março 25, 2008

O ASSINALADO (Cruz e Souza, no cd POLIVOX)


Gravei este soneto de CRUZ E SOUZA (1861-1898), ars poetica e profissão de fé, no CD POLIVOX, de 2001, que virou um blues. Para ouvir a faixa, clique aqui:




Ficha técnica:
Rodrigo Garcia Lopes (voz, vocalize, teclado, caixa de fósforo, tantan, chocalho, caixa e efeitos). Sidney Giovenazzi (baixo e teclados).


O ASSINALADO

Tu és o louco da imortal loucura,

O louco da loucura mais suprema.

A Terra é sempre a tua negra algema,

Prende-te nela a extrema Desventura.


Mas essa mesma algema de amargura,
Mas essa mesma Desventura extrema
Faz que tu'alma suplicando gema
E rebente em estrelas de ternura.


Tu és o Poeta, o grande Assinalado

Que povoas o mundo despovoado,

De belezas eternas, pouco a pouco...


Na Natureza prodigiosa e rica

Toda a audácia dos nervos justifica
Os teus espasmos imortais de louco!



terça-feira, março 18, 2008

DIÁRIO DO OESTE


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Cidade fantasma (anos 30), Montana


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"GO WEST"



As Montanhas Rochosas
ficaram novamente para trás:
estamos em Montana.

o reflexo do que você
é
apenas o que pode parecer


Durante o recesso de primavera viajei pelo Oeste Americano com um passe de 15 dias de trem que custou 320 dólares. Foram quase 9 mil quilômetros de chão, atravessando 14 estados. A primeira perna da viagem pela Amtrak (que calcula os percursos de forma a viajar os trechos mais belos de dia): três dias ou cerca de 54 horas de Chicago a San Francisco pelo
California Zephyr. A presença dois primeiros habitantes nos nomes apenas: Iowa, Nebraska, Colorado, Utah, Nevada, California.

Depois 3 dias de descanso em San Francisco, novamente mais três dias, de Seattle, estado de Washington, pelo
Empire Builder, bordejando o Canadá, atravessando Oregon, Idaho, Montana, North Dakota, Wisconsin, até o ponto de partida: Chicago, Illinois.

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Saindo de Chicago, depois de passar por subúrbios industriais decadentes e plantações de aveia e milho, já no começo da noite, o Zéfiro da Califórnia chega numa cidade curiosamente chamada Aurora.

Paisagem marrom, rios com placas de gelo moventes. Pela janela do trem, depois de cruzar o Velho Mississipi, na direção de O-MA-HA ("habitantes dos rochedos"). A neve dos últimos dias se acumula por toda parte. - 5 graus.

O trem aumenta a velocidade antes de penetrar a grande noite americana.

Sonho com a batalha de Little Big Horn, com Touro Sentado falando sobre talheres de plástico e bloody-maries.

"Vai por mim: primeiro os búfalos, depois os índios".






Amanheço em Denver, fundada em 1859 durante a Corrida do Ouro. O trem pára por uma hora, antes de fazer o longo caminho pelas Rochosas. Aproveito e peço informações pro xerife, vejo sua estrela, e ele me indica o Oxford Hotel. Às seis da manhã, é o único lugar aberto. Atravesso a rua deserta. Compro cinco câmeras descartáveis, agradeço à moça, e volto para o vagão. Recarrego Ralph Towner no toca-CD.


Bonneville Salt Flats. Helper. Grand Junction. Provo. Elko. Winnenucca. Mustang Ranch. Os nomes ecoam na cabeça, se embaralham em suas próprias tramas, como estações.

Em Busca do Ouro do Oregon

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Denver, fundada no auge da Corrida do Ouro, é uma lembrança. O sol mergulha nas Terras do Oeste, no ventre da floresta, entre montanhas glaciais.


O tempo congelado das pradarias e das Rochosas.



As Rockie Mountains, por muito tempo, impediram a colonização do Oeste e seus longes colossais que fundem céu e terra. As planícies ainda eram um desafio para quem se aventurava. Um mundo belo, mas assustador. Com os trens, "os monstros das pradarias", avançando cada vez mais rumo ao oeste, e principalmente em 1849, quando ouro foi descoberto na Califórnia, estava aberta a porteira ocidental. Só precisava avisar os Sioux, Cheyennes, Lakotas e centenas de tribos. A resistência de Nuvem Vermelha.

Primeiro foram as trilhas de caçadores de peles, depois milhares de aventureiros naquela imensidão. Oregon Trail. Nem todos chegavam ao destino, por tempo inclemente, índios, ou doenças.

Um texto que é feito de partidas e chegadas e partidas e chegadas. Uma frase parte e, apesar dos trancos e barrancos, e que inevitavelmente chega a um ponto final. Dele entram e saem personagens. E depois mais movimento, outra partida. Escuridão de um túnel, e novamente as “montanhas brilhantes” ressurgem.


Subindo as Rochosas, e durante os próximos dias, jovens com lap tops vendo filmes, casais aposentados bebendo vinho, gente sobretudo jogando baralho, conversando, gente lendo, olhando a paisagem, fotografando, conversando, comendo, principalmente domindo.


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A experiência transitória do trem acentua a consciência das coisas passando, o trem das idéias e da mente em movimento, como a paisagem lá fora. Perpetuum travelling.


Rio Colorado, Montanhas Rochosas, Colorado

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A pele havia se tornado um palimpsesto de paisagens fugazes, páginas escritas com tinta limão. Cada nova frase é escrita sobre a anterior, e assim sucessivamente, até que esta se revele novamente a nova frase, como um código secreto e fugaz.


O trem acompanha da nascente do Colorado por 36o milhas. Uma águia flutua sobre o rio congelado. O rio desaparece na neve cremosa. Alces, cervos, pássaros. Um coiote encara o comboio e espera-o passar. Montanhas em forma de mesa. Amanhã será a vez do deserto de Nevada.

Terra do Grande Céu

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A pradaria (página ou tela) pontuada de montanhas (pixels, pontos, reticências).

(As Superstition Hills marcam fronteira de Montana com o Canadá)


Diário do Oeste

Durante o recesso de primavera viajei pelo Oeste Americano com um passe de 15 dias de trem. Foram quase 9 mil quilômetros de chão. Três dias de Chicago e San Francisco pelo California Zephyr. Depois 3 dias de descanso em San Francisco, novamente mais três dias de trem, de Seattle, estado de Washington, a Chicago, pelo Empire Builder, bordejando o Canadá, até Chicago novamente. Uma viagem para não se esquecer nunca mais.

Cidade-fantasma, Dakota do Norte

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"Shinning Mountains", Colorado

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Nas Montanhas Rochosas: a neve é uma chuva mais lenta.


Rancho de cavalos à beira do trem, Montana


Um flashback do Velho Oeste?
Rancho de cavalos nas pradarias de Montana e suas sinuosas colinas, com cilindros de feno em primeiro plano. Montana, março de 2008.
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Montana

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Salpicados pela pradaria de Montana, o País do Grande Céu, o lugar onde dizem que o céu é ainda maior, além das cidades fantasmas, vejo por toda parte estranhas casas em ruínas inclinadas pelo vento rigoroso desta região, cemitérios de automóveis, de peças de fazenda, capôs de carros sendo devorados pela grama alta e marrom. Profecia de Sitting Bull?

De repente, uma cena incomum: incêndio no pasto de uma fazenda, com dois carros sofisticados de bombeiro lançando água e cruzando o chão carbonizado. Algo comum e incontrolável nos idos de 1860.

Com a descoberta de ouro em Montana, cidadezinhas mineiras apareceram da noite para o dia. E do dia pra noite, também, desapareceram.

Shadow Train e California

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O tempo do trem é envolvido por uma espécie de irrealidade, acentuada pela materialidade absurda da paisagem lá fora – perpétuo movimento.

Shadow train.

Traveling Hotel.

Como a viagem, o texto é feito de acelerações, frases-vagões, chispas metálicas, curvas, turbulências. Chegadas: partidas.


Half-Moon Bay, Califórnia.



Carro antigo em Half Moon Bay, com observatório ao fundo.


Cruzando as Glaciers Mountains, fim do dia, Washington

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Por estas paisagens passaram, em 1805, atravessando o rio Colúmbia, a expedição heróica de Lewis e Clark, na reta final de sua viagem (a pé, em canoas, a cavalo) da costa leste a oeste dos Estados Unidos, numa viagem de dois anos. Aqui a paisagem é totalmente diferente: altas montanhas nevadas, floresta densa (rain forest), muita água por toda parte.

Cruzando as Glacier Mountains, Oregon-Washington, no caminho de volta

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Testemunhas da natureza, do mundo não-humano.



Desde o começo da colonização norte-americana, o padrão da invasão do continente pelos europeus foi de violência, de negação do outro, e do holocausto das populações nativas e suas culturas. Gary Snyder fala do “trauma” presente na mente norte-americana. para ele, “o índio americano é o fantasma que se espreita no fundo da perturbada mente americana"



Cruzando o Rio Colorado, Colorado

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A chaleira de latão já esquenta no fogo do acampamento

Águia em seu rasante sobre água gelada

Alce em sua arrancada, galho caindo no rio com o peso da neve

vi um enorme lobo cinza avançando lentamente por uma curva do rio Colorado congelado e parando e se agachando exatamente no meio do caminho para cagar:


Bear Paw Mountains, Montana

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Mobilis in Mobili; "se movendo numa coisa móvil", disse capitão Nemo a bordo do Nautilus.



Viagens à Hiperrealidade



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O brilho hiperreal dessa natureza selvagem, Velho Oeste. Seus caubóis invisíveis enfrentando tempestades e visões indígenas no meio do deserto e das pradarias. Viagens à Hiperrealidade. O horror dos estouros de boiada, estampidos. Solo sagrado: postais do Inferno e Paraíso Perdido.



No book is on the table.

The train is a traveling hotel.



Rochosas Hokusai

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Cruzando Nevada

Elko ficou para trás, ha três horas

Espaços se desdobram

Rumo a Sierra Nevada

Amanhece no deserto móvel

Que se ilumina por dentro

Montanhas ocres salpicadas de branco rochas escarpas como um escalpo contra um céu índigo

A cena de um crime

A paisagem congelada em movimento.


Fazenda fantasma, Montana


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Outra fazenda-fantasma de Montana, com ponte antiga em primeiro plano e Superstition Hills (Canadá) ao fundo.

Ditado Lakota:

“Saberão de nós

para sempre

pelas pistas

que deixamos

para trás”



Half-Moon Bay, California (Os Pássaros)

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Não eram pedras, eram gaivotas.

Leitura no Trem, Nevada

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Toda a mitologia do oeste está aqui. Dos mitos da Ilha da tartaruga (nome indígena para América) até os criados pelo homem: a “conquista do oeste”, a Corrida do Ouro, saloons, pragas de gafanhotos, tornados, tempestades, nevascas, cidades no meio do nada, assaltos a trens, Billy the Kid, Calamity Jane. Os mórmons chegando ao Eldorado do Grande Lago Salgado. Os índios, em sua brava dignidade e seu amor à natureza. Alguns surgem em formas de pequenos redemoinhos de vento. A paisagem é um deus. Seus símbolos respiram por toda parte, sem respeitar o tempo humano.