Visito a casa de Pound na Itália. É uma mansão de paredes que parecem um mosaico, escadas em caracol, cercada de ciprestes altíssimos que roçam o céu. Mary de Rauchewitz, sua filha, me atende. Está vestida com elegância, toda de branco, como uma Emily Dickinson. As paredes, logo percebo, são feitas de livros. Ligo o gravador e ela conta que viveu um tempo em São Paulo, fala da amizade com os irmãos Campos e eu digo que também os conheci, numa outra vida. Uma luz intensa emana do interior da casa. Ela vai me mostrando coisas preciosas, manuscritos inéditos do pai, páginas e páginas escritas a mão e outras datilografadas. Mas o principal são dois volumes dos Cantos com anotações do próprio poeta, com a maioria dos versos reescritos por ele. São suas provas para uma segunda e improvável edição, Mary me diz. Os dois tomos são acondicionados em uma pasta de couro verde muito grossa e que fecha com um fecho que faz um som metálico. Fico intrigado, manuseando os volumes, enquanto a filha de Pound vai buscar o chá. O poeta está lá, olhando pela janela. Parece nem perceber minha presença. Tem um ar deprimido, e de vez em quando volta a cabeça em direção à mesa onde entrevisto sua filha. Enquanto o chá não vem, as palavras dos Cantos brilham sob meus olhos. Nem penso em surrupiar um volume daqueles, ainda mais na presença do poeta. Poderia encher o cu de dinheiro com aquilo, penso. Descubro que tenho a capacidade de memorizar todos os versos, por mais numerosos que sejam. Eles se traduzem automaticamente em minha mente. Olho para as palavras e para o poeta, sentado junto à janela, tão perto e tão distante de mim. Ele parece não se importar com mais nada. Sabe que já está morto e que isso é um sonho. Arrasta os passos pela casa, como se andasse com correntes invisíveis. Está cansado, mas ainda é o velho Pound. O poeta olha para mim e dá um sorriso benevolente. Ele tem os olhos mais tristes que já vi. Sussurra, finalmente: "Te ensinei tudo o que podia, rapaz". Isso me desconcerta. Subimos os três ao solário e contemplamos o nascer do dia, a aurora de dedos rosas, o vulto dos ciprestes contra um céu espetacular. Toda a atmosfera é banhada por uma luz irreal, tristemente dura. Decido que, quando voltar, ou acordar, a primeira coisa que farei é reler os Cantos. Mary conversa bastante comigo sobre o que ele passou, o exílio, e o limbo em que o poeta vive atualmente. Estamos em 1972. Ela diz que o pai já desistiu de lutar pela vida, por um paradiso terrestre. Velho Pound, encostado no beiral do solário, passa a declamar trechos em italiano e provençal de sua poesia com voz roufenha, e é interrompido por uma longa tosse. Não estamos em Veneza, e sim no interior, talvez Florença. Mary fala pelo pai, e remói ressentimentos antigos, de quando ele foi trancafiado numa jaula durante a Segunda Guerra Mundial. Da longa temporada no hospital Saint Elizabeth. Claro que nem toco na questão do fascismo. Ela me serve um chá fumegante. Enquanto contemplo os livros da bibliocasa, Mary anuncia que vai sair, diz que o poeta está dormindo, e pede que eu và a cozinha e faça alguma coisa, que me sinta à vontade. Quando ela sai a casa mergulha misteriosamente no breu. Ouço o barulho do carro de Mary se afastando. Estou morrendo de fome, encontro dois burritos mexicanos (?) na geladeira e decido esquentá-los no microondas. Faço uma bagunça danada na cozinha e acabo estourando o microondas e sujando todas as paredes com um tubo imenso de catchup. Fujo de lá para não ser advertido pela filha do poeta. Pound está dormindo, num canto da sala, como um menino. Fecho os olhos. Quando os abro novamente estou caminhando à esmo pelas ruas de Curitiba. Apenas metade do meu corpo está coberto. Estou nu da metade para baixo. Sinto que serei preso ou linchado se me virem. Um trecho da calçada onde caminho está coberta por tapumes. Jaime Lerner é o prefeito novamente, vejo cartazes dele por toda a cidade. Caio num buraco, estão construindo um metrô. Consigo me safar e tento encontrar o caminho de volta para a casa onde estava, mas a Itália agora está tão longe. As placas nas ruas mudam os nomes para me confundir. Subitamente anoitece e paro na frente de um restaurante alemão. Músicas bávaras soam das janelas. Todos lá dentro parecem estar se divertindo um bocado, menos eu. O céu está estranhamente estrelado. Percebo que não são estrelas. Alguém está escrevendo mensagens de amor no céu com uma nova tecnologia. Pessoas puxam cadeiras e se sentam nas calçadas para assistir aquele estranho espetáculo. Não é coisa de Deus. As letras, brancas contra o fundo negro, cabalisticamente trocam de lugar e formam mensagens de amor e, finalmente, o seu nome. Sinto um arrepio me atravessar o corpo. Então você aparece à minha frente, como mágica, me olha e segue adiante pelas ruas, fingindo não me reconhecer. Consigo umas roupas com um garçom vestido de trajes típicos alemães, são roupas de um mendigo. Saio em disparada pelas ruas para ver se te alcanço. Entro num edifício comercial. Quando agarro a manga de sua blusa, digo que desse jeito vou ter que acabar lhe pagando direitos pelo uso de sua imagem. Você não entende a piada. Tento pegar na sua mão no elevador. Você a solta e sacode a cabeça. Pela milésima vez tento argumentar. Mas você não dá chance para minhas palavras. Termino o sonho balançando a cabeça tristemente, imitando seu gesto, olhando você pela última vez, enquanto a porta do elevador se fecha. Tudo o que quero agora é voltar para a casa de Ezra Pound, para o silêncio de sua estranha biblioteca.
4 comentários:
Maravilhoso, chapa!
por onde andas, rubinho?
Mary, como Emily, sente saudade do pai.
Ana
Obrigado pelo texto Rodrigo.É uma mistura jornalística e ficcional maravilhosa.
Abraço
Diogo Mendes
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