quarta-feira, dezembro 16, 2009

SEM CARONA


Desta vez duas garotas me convidam para visitar uma cidade que penso ser Aspen, Colorado. Deve ser próximo do Natal, porque vejo meia dúzia de papais noéis com apetrechos de esqui nos ombros, descendo a rua. Enquanto tentam estacionar, Kathy Acker (não lembro o nome da outra) acaba sendo testemunha de uma batida de carro, nada muito grave. Mas ela tem problemas na justiça, ou assim penso eu, e quando o casal vietnamita dá ré e pergunta para mim se poderia contar com a ajuda delas como testemunha (os vietnamitas não foram culpados pelo acidente) ouço um "nem morta" do dentro do carro, seguido de uma arrancada brusca que leva meu paletó que estava preso na porta da van banca e marrom de Kathy. Não demoro muito para descobrir que estou sem minha carona para voltar para Asheville. Não tenho dinheiro, nem o telefone celular de Kathy. Tento me reconfortar com o pensamento de que ela e a outra estão apenas dando voltas pela cidade e que com certeza elas irão me buscar. Elas jamais fariam isso (me largar lá no meio da rua. Ou fariam?). Sim, fariam. Fico parado numa esquina durante uma hora. Nada acontece. Ninguém aparece. Decido então dar uma volta pelo centro da cidadezinha, rodeada de montanhas da cor de leite contra um céu muito azul. Estou na sacada de um hotel que lembra o do filme O Iluminado, olhando para um jardim todo cinza e sem graça quando um policial gordão pula em minha direção, de trás de um pilar, me aborda e pergunta o que estou fazendo ali e o que quero. Ele tem olhos frios e azuis e me interroga como se eu tivesse acabado de fugir da prisão estadual. Respondo com um inglês perfeito que estou apenas conhecendo a cidade. Ele diz que nunca viajou para fora da sua cidade natal. Ele fala dos Estados Unidos como se fosse um país estrangeiro que ele sonhasse em visitar um dia. Penso, que idiota. Ele me libera. Acabo entrando por engano no mesmo prédio imenso por uma porta que abre por fora mas não por dentro. Começo a andar pelos corredores do hotel, com tapetes imensos cobrindo o chão e quando percebo vejo mais policiais fardados de azul escuro zanzando pelos corredores. Ouço o som de alto-falantes e quando me vejo estou numa sala onde está escrito CONVENÇÃO MUNICIPAL DOS POLICIAIS DE ASPEN. Tento não entrar em pânico e me disfarçar, talvez me tomem por algum parente de um policial. Pergunto pela saída para vários policiais. Me vejo no espellho e percebo que meu aspecto é de um boliviano daqueles que tocam zamponas em cidades brasileiras em praças públicas. Quando tento achar novamente a saída uma policial lindíssima fecha meu caminho. Caio na besteira de bater continência. Ela não gosta da brincadeirinha. Vejo pelos olhos que ela já conseguiu mandar alguem para a cadeira elétrica. Tento achar um telefone público, mas no momento todos estão tomados por policiais tentando se comunicar com suas famílias. É a final da NBA, e todos querem informações sore o desenvolvimento da partida. Finalmente um tira camarada me dá uma dica de saída e me vejo novamente na praça central da cidadezinha. Nem sinal da van marrom e branca de Kathy. Começo a me desesperar. Elas são minha única chance de sair daquele paraíso de esquiadores. Procuro um orelhão, e no meu sonho eles ainda existem. Vasculho meus bolsos da calça jeans, que estão cheios de papéis, anotações, poemas, mas nem um sinal, nem uma pista de onde eu estava hospedado. Converso com um jovem hippie de bicicleta que decide me ajudar. Ele pede moedas para que eu possa ao menos ligar para o hotel na cidade vizinha onde eu estava, mas não tenho moeda, apenas um cartão de crédito. Ele diz "serve" e consegue (sabe-se lá como) retirar o equivalente a dois dólares em moedas, que ele me entrega num envelope branco. Um segundo depois ele some misteriosamente. Com meu cartão, lógico. Aí percebo que estou realmente fudido. E outra pessoa, uma mulher com cara de má e com um Dobbermann na coleira, já se apossou do telefone. E pelo jeito ela vai demorar horas. Começa a nevar e fazer frio e percebo que não tenho nenhum agasalho. E nem sinal da Kathy e sua amiga. Me aproximo de um grupo de pessoas com caras chicanas e latinas mas incrivelmente percebo que não consigo entabular uma frase sequer em espanhol. Eles falam sobre futebol, mas creio que não é sobre a NBA, mas sobre a final do campeonato mexicano, que eles estã oouvindo ao redor de um radinho de ilha. Entro numa quitanda mexicana mas não consigo articular nem uma palavra em espanhol. Todos ficam me olhando com cara de desprezo. Volto para a mesma esquina onde Kathy e a amiga me deixaram. Vasculho cada carro que passa para ver se são elas. Começa a nevar muito. Vários carros com tiras passam por mim, as luzes vermelhas e azuis revistam a neve e ferem meus olhos, mas depois de algumas horas me sinto parte da paisagem. Já virei invisível. Já nem me encaram mais. Percebo que vou ficar muito, muito tempo ainda por ali. Decido deixar-me naquele sonho, pois lembro que tenho compromissos nesta manhã de sábado. Meu outro eu que se vire. Acordo. Confesso que me sinto culpado de ter me deixado ali, sem grana nem documento, numa cidade que vagamente me lembra Aspen, no Colorado.

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