quinta-feira, março 22, 2007

Robert Creeley: ou, a poética da respiração concisa


Um dos mais importantes poetas norte-americanos, Robert Creeley (1926-2005) privilegia em sua poesia a percepção refinada das coisas e dos ritmos da fala, que reinventam o cotidiano
Rodrigo Garcia Lopes
Não seria exagero dizer que Robert Creeley forma, ao lado de John Ashbery e Allen Ginsberg, o ataque da poderosa poesia norte-americana contemporânea, em toda a sua diversidade de experiências. Dos três, apenas Ashbery ainda está vivo. Nas últimas décadas, Creeley adquiriu o status de verdadeiro chef d'école, influenciando uma legião de jovens poetas e mudando hábitos de leituras e idéias sobre "o que é poesia". Um exemplo de como ainda é possível provocar deslocamentos dentro da tradição literária. É no mínimo surpreendente que sua obra, quase sempre residual, mínima (porém sem que isso se traduza necessariamente numa poética “rala”), e que questiona de forma tão incisiva a possibilidade mesma da poesia (crítica da linguagem), tenha se tornado tão popular nos Estados Unidos, ou pelo menos tão influente.
Nascido em 21 de maio de 1926, em Arlington, Massachusetts, professor na Universidade de Nova York em Buffalo, Creeley começou a ficar conhecido nos anos 50, como editor da "Black Mountain Review" -- revista da universidade alternativaperto de Ashville, na Carolina do Norte, liderada pelo poeta Charles Olson, e que reunia músicos como John Cage e filósofos como Buckminster Fuller. A primeira fase de sua obra, como em "For Love" (1962), revela a presença marcante de William Carlos Williams. Pode-se dizer que a poesia de Creeley é um aprofundamento do método e das preocupações presentes na obra de Williams e dos objetivistas. Porém, o “objetivismo” de Creeley é frequentemente interior. Isso é, ele tenta captar objetivamente – e compactar, muitas vezes “nas entrelinhas” -- estados mentais intensos subjetivos, bem como a complexidade de sua rememoração no instante em que é mediado pela linguagem poética. "I see as a write", escreveu Creeley ("Eu vejo enquanto escrevo". Como a poesia de Lorine Niedecker, a poesia de Creeley quer “pensar com as coisas tal qual existem”. Na observação precisa de eventos que, mesmo que banais, são sempre iluminados por sua percepção, feita de disjunções.
Apesar de praticante de gêneros de maior fôlego, os poemas de Creeley costumam ser breves e meditativos. Buscam a concisão possível, embora Creeley pareça reconhecer que concisão não é tanto uma questão de quantidade mas de qualidade (num poema, você pode ser "conciso" e não dizer coisa nenhuma). Em seus melhores momentos, Creeley obtém o máximo de expressividade com um mínimo de palavras. Esse laconismo, ao contrário do que possa parecer, não deriva de uma falta do que dizer, nem de uma incapacidade de ousar em outras “levadas” prosódicas. Antes, mais que marcada pelo lugar, é uma questão de temperamento. O próprio autor dá a dica: “Cresci numa fazenda. Tenho o senso de fala como um modo lacônico e comprimido de dizer algo a alguém. Dizer pouco sempre que possível”.
Eterno enquanto dure
O autor de "Pieces" (peças, pedaços) não aprecia muito a idéia difundida pelo senso-comum da vida (e da poesia) como algo contínuo. Seus poemas, vacilantes, parecem estar o tempo todo querendo incorporar o caráter fragmentário e residual da experiência poética. Por isso, parecem muitas vezes "incompletos". A intenção parece ser chamar a participação do leitor, dissolver a continuidade e o conjunto de imagens que normalmente "amarram" um poema. Não há fecho nem "eu" fixo. Creeley vale-se mais de fragmentos, de durações, feixes de sensações, do que emoções completas. Embora saiba que o ego muitas vezes representa uma barreira para a experiência, não parece ir tão longe a ponto de eliminar a subjetividade. Ao contrário: seus poemas demonstram a experiência de alguém que não vê separação entre linguagem e vida. Cada poema é o registro dessa articulação: “Muitos poemas meus vieram de um contexto difícil de se viver, por isso queria que a linha registrasse esse tipo de problema...uma linha truncada aqui, ou curta, parecendo quebrada, vindas de emoções algo quebradas”. Em outras palavras: nos melhores poemas de Creeley, a forma é sempre uma extensão do conteúdo (como ele mesmo escreveu), resultante do vacilo entre o som e sentido.
Marcante para sua formação poética foram os princípios estéticos do chamado "projetivismo" bem como a poesia beat, que adotavam formas poéticas mais abertas. A idéia adotada por Creeley é de que cada poema seja, via linguagem, uma espécie de mapa perceptivo, guiado pela "respiração" do pensamento.
A respiração interior -- o andamento musical e mental do poeta no momento da escrita e o impacto do que ele vê -- passa a ser a nova medida do verso. As pausas e cortes súbitos indicam suspensões da fala, e os deslocamentos sintáticos tentam expressar um mundo captado com a atenção “distraída”. Há a consciência de que cada poema é o registro de uma revelação e, como tal, irrepetível. "Creeley é o mestre da fala imediata e esse é o compasso de sua escrita" (Ed Dorn). Por ser corporal, esta medida está mais apta a captar as hesitações do pensamento, as relações com o outro e com o mundo, ao mesmo tempo em que reflete a busca obsessiva pela palavra precisa.
Mesmo que seja, às vezes, para dizer o que não pode ser dito: “e lá /estava, uma pequena/ delicada coisa, um/ tipo de pequeno/ nada”.
Nota.
1. Impossível deixar de apontar semelhanças entre o poema "Não", traduzido aqui, com um conhecido poema de Leminski: "Não fosse isso/ e era menos/ não fosse tanto/ e era quase”.


Poemas de Robert Creeley


SOME ECHOES

Some echoes,
little pieces,
falling, a dust,
sunlight, by
the window, in
the eyes. Your
hair as
you brush
it, the light
behind
the eyes,
what is left of it.

CERTOS ECOS
Certos ecos,
pequenas peças,
se depondo, pó,
brilho de sol, pela
janela, nos
olhos. Seus
cabelos enquanto
você os pen-
teia, luz
atrás dos
olhos,
o que ficou de tudo.


PHONE

What the words,
abstracted, tell:
specific agony,
pain of one so
close, so distant --
abstract here --
Call back, call
to her -- smiling voice,
Say, it's all right.


FONE

O que as palavras,
abstraídas, contam:
específica agonia,
dor de alguém tão
perto, tão distante --
abstrato aqui --
Ligue, outra vez
pra ela -- voz que sorri.
Diga, tá tudo bem.



LIKE THEY SAY

Underneath the tree on some
soft grass I sat, I
watched two happy
woodpeckers be dis-
turbed by my presence. And
why not, I thought to
myself, why
not.


COMO ELES DIZEM

À sombra da árvore sentado
sobre a relva macia, vi
dois alegres pica-paus as-
sustados
com minha presença ali. E
por que não, pensei
comigo, por que
não.




NIGHT IN NYC

Must be almost four,
light rain
in the city,
car slide past
as walking feet,
my own,
get me on it
years past now,
same place.


NOITE EM NOVA YORK

Deve ser quase quatro,
chuva leve
na cidade,
carros deslizam
como pés a esmo,
meus mesmo,
me levam junto,
anos depois,
mesmo lugar.



A STEP

Things
come and go.
Then
let them.


UM PASSO

As coisas
vêm e vão.
Deixe-as
então.



THE WARNING

For love -- I would
split open your head and put
a candle in
behind the eyes.
Love is dead in us
if we forget
the virtues of an amulet
and quick surprise



O AVISO

Por amor -- podia
partir sua testa e pôr
uma vela acesa
atrás dos olhos.
O amor é morto em nós
se se despreza
as virtudes do amuleto
e rápida surpresa.



PHOTO


They say a
woman passes at
the edge of the
house, turning

the corner, leaves
a very vivid sense,
after her,
of having been there.



FOTO



Dizem que uma
mulher ao passar
os limites da
casa, dobrando

a esquina, deixa
uma sensação vívida,
atrás de si,
de ter estado ali.



SOUND

Hearing a car pass --
that insistent distance
from here to there,
sitting here.
Sunlight
shines through the green leaves,
patterns of light and dark,
shimmering.
But so quiet
now the car's gone,
sounds of myself smoking,
my hand writing.


SOM

Ouço um carro que passa --
essa distância insistente
daqui ali,
sentado aqui.
Luz do sol
cintila entre folhas verdes,
desenhos de luz e sombra,
tremeluzindo.
Mas tudo quieto
agora que o carro passou,
sons da fumaça que solto,
mão que escreveu.


NO

No farther out
than in --
no nearer here
than there.


NÃO

Não menos longe
que dentro --
não menos perto
que além.



Tradução: Rodrigo Garcia Lopes

(Do livro "The Complete Poems of Robert Creeley - 1945-1975", University of California Press, 1982)

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