quarta-feira, março 21, 2007

PALAVRAS REAIS DE UM POETA INEXISTENTE

(na Folha de hoje)


Curta-metragem aborda a possível trajetória de Satori Uso, personagem que saiu da imaginação do escritor londrinense Rodrigo Garcia Lopes

Divulgação

A atriz Caren Utino interpreta Satine, a musa de Satori: personagens imaginários dão suporte poético à narrativa do filme
César Augusto

Rodrigo Grota, diretor e co-roteirista, criou um ''documentário'' sobre a breve passagem do poeta japonês em Londrina, na década de 50: cruzamento de metalinguagens
Reprodução

''Foto'' de Satori Uso, cujos poemas e haicais chamou a atenção de gente ilustre como Paulo Leminski
Satori Uso teve seus poemas traduzidos para o português na extinta coluna ''Leitura'' da Folha de Londrina, em 1 de setembro de 1985, pelo escritor Rodrigo Garcia Lopes. Tamanha foi a repercussão do poeta com seus haicais que incitou, até, curiosidade e comentários elogiosos de Paulo Leminski. Mas em uma mesa de bar, Garcia Lopes revelou ao cineasta Rodrigo Grota, então repórter de cultura do mesmo jornal, que Satori era figura ficcional. Nascia a primeira fagulha para o filme ''Satori Uso'', que será exibido pela primeira vez ao público no próximo sábado em Londrina.

O curta foi rodado em Londrina e Assaí entre 5 e 12 de março de 2006, com produção da ONG Kinoarte (Instituto de Cinema e Vídeo de Londrina) e patrocínio do Promic (Programa Municipal de Incentivo à Cultura), no valor de R$ 100 mil. De acordo com Grota, que assina a direção, co-produção executiva, e divide o roteiro com Garcia Lopes, é a primeira vez que a Kinoarte produz em 35 mm. ''No final a gente tinha seis horas de imagens, que foi reduzida a 25 minutos. Destes 25, cortamos até chegar aos 17 minutos. Foi bem difícil tirar algumas cenas, já que muitas delas eram boas'', justificou.

A essência criativa do ''documentário'' sobre a fugaz passagem do poeta japonês pela Londrina dos anos 50 é edificada através da ótica do cineasta americano Jim Kleist. Uma dupla-metalinguagem, já que a história do alter ego Satori Uso foi conduzida pelo personagem fictício, no caso, Jim Kleist. Parece complicado? ''É um falso documentário feito sobre um poeta que nunca existiu, dirigido por um cineasta que também nunca existiu'', simplificou.

Segundo Grota, o curta apresenta trechos de um filme inacabado de Kleist, intitulado ''Isolation'', que teria sido rodado em Londrina em 1967, ocasião em que o cineasta americano esteve no Brasil. ''Jim Kleist idealizou um filme como resposta visual à trajetória de Satori'', lembrou. Aliás, é o próprio Kleist quem narra a história, na voz de José de Aguiar, diretor de arte.

Estrelado por Rogério Ivano (Satori) e Caren utino (Satine), o curta é conduzido pelo romance entre os dois. ''Para o tratamento do roteiro, nós utilizamos a intervenção de dois elementos novos: a Satine e o Jim Kleist. Eu estava buscando uma peça de desintegração, já que o Satori não apresentava conflitos dramáticos. Então surgiu a idéia da musa do poeta, e o desejo que foi se intensificando aos poucos'', lembrou.

Em 2001, Rodrigo Garcia Lopes publicou em seu livro ''Polivox'' (Azougue Editorial) com um capítulo dedicado aos 15 haicais do alter ego japonês.

''Satori Uso'' incia a série de três curtas sobre a a Londrina dos anos 50, considerada por Grota a ''Trilogia do Esquecimento''. O segundo filme será inspirado na passagem do jazzman americano Booker Pittman pela cidade, e será rodado em agosto deste ano, também com produção da Kinoarte e Prefeitura de Londrina. ''O terceiro filme eu ainda não posso revelar quem será o personagem, mas os três irão dialogar entre si'', disse.

Satori existiu? Talvez sim...

Um personagem permeado de riquezas interiores que se revela através de um silêncio quase desconcertante. Satori Uso também teve uma dinâmica de vida como qualquer pessoa: nasceu, cresceu, se apaixonou e se decepcionou. Mas, longe de ser banalizado, carregava um abismo dentro de si.

Dizem que teve apenas um livro publicado em vida, antes de desembarcar no Brasil. O poeta teria nascido 2 de outubro de 1945 e migrado para o Brasil em 1975. Antes disso, passou alguns anos no mosteiro zen budista e depois virou hippie. Após perder quase toda sua obras durante a viagem (entre peças nô, haicais lisérgicos e um esquisito romance), fora parar no sítio de um amigo em Assaí. Nos últimos anos de vida, Satori passava o tempo todo em meditação profunda, quase não falava e se tornou obcecado pela decoberta da linguagem com a qual poderia conversar com as estrelas.

Tanta verossimilhança se distancia ainda mais da abstração ao vê-lo em cena no curta-metragem. A natureza, a sombra, a música, a solidão, a sombra, a descoberta, a pena da caneta, a sombra, os discos, o amor, enfim, a sombra. Satori fugia da luz, então só poderiam encontrá-lo no escuro. Satori e aproximava da luz apenas quando perto de Satine, seu ensejo contínuo, mesmo com o fim. Uma história linear, não simples, mas que apresenta confluência de roteiro, trilha sonora, fotografia e direção. Familiaridade.

Fica a nítida sensação de que meus avós poderiam ter conhecido Satori. Pensando bem, acho que eles já comentaram a respeito desse poeta quando eu era pequena... (L.O.)

Serviço

- Lançamento do curta-metragem ''Satori Uso'', de Rodrigo Grota. No Cine Com-Tour. Sábado, às 20h30. Entrada franca. Na mesma sessão, serão exibidos os curtas ''Londrina em Três Movimentos'' e ''O Quinto Postulado''.

Liliana Onozato

Nenhum comentário: