sábado, janeiro 05, 2008

MEU ENCONTRO COM "A BESTA DOS PINHEIRAIS"

O "Polaco" diante do quartel-general no bairro do Pilarzinho

Cruzamos pessoas todos os dias, embora alguns encontros, com a marca do acaso, têm a força de mudar nossas vidas de modos insuspeitos. Em 1982, com 17 anos, eu cursava o primeiro ano de Jornalismo na Universidade Estadual de Londrina. Apaixonado por poesia, respirava nos corredores da UEL um ambiente de muita criatividade e rebeldia. Eu havia ouvido falar de Leminski ainda na 8a. série e lido alguns poemas seus em jornais e antologias. Uma matéria que saiu na Veja, mostrando a figura, de bigode e violão, parecendo um poeta polonês perdido no século 20, na escada de sua casa no bairro do Pilarzinho, atiçou minha vontade de conhecê-lo pessoalmente.
Certo dia, no início de 82, caiu em minhas mãos um exemplar do Não Fosse Isso. O livro, branco e quadradão, com tipografia à cummings, bateu na hora. Emprestei o livro para sempre e passei os próximos dias devorando-o. A leitura do livro deu a senha para todas as minhas inquietações poéticas da época: como achar uma terceira via entre o rigor de linguagem e o leque de repertório oferecido por Pound e pelos irmãos Campos sem, contudo, abrir mão da espontaneidade e visceralidade da poesia marginal. A resposta estava ali, pós-concreta, pós-marginal, na minha frente, na carne de seus poemas. Absolutamente maravilhado com o livro, parti para a leitura do enlouquecedor e ilegível Catatau. Em julho parti para Curitiba, com a desculpa de fazer uma entrevista com ele para um fictício jornal laboratório.
Na capital, sem nenhuma idéia de como conseguir o telefone da “besta dos pinheirais”, fui passear no calçadão da XV. Entrei na Livraria Gighnone. Depois de folhear alguns livros e lançamentos, já quase ganhando a rua, uma voz alguns decibéis acima do normal, de um sotaque curitibano fortíssimo, chamou minha atenção. Olhei e não acreditei: era Leminski, ali, em carne e osso, indignado com os funcionários por não encontrar seus livros nas prateleiras. Tomei coragem adolescente, esperei a poeira baixar, me aproximei por trás do bigodudo com cara de trotskista e cutuquei suas costas com o dedo indicador. No que ele se virou, fuzilei: “Você é o Paulo Leminski?”. Ele abriu um sorriso maroto, me apresentei e disse, com ar de desafio, que havia acabado de ler o Catatau!”. O cara fez cara de espanto, riu e emendou: “PoRRRa, mas nem eu consigo mais ler aquele livro!”. Perguntei se era verdade que ele havia escrito o Catatau bêbado. Leminski: “Não exatamente”, respondeu, dando uma risadinha sacana. Peguei seu telefone e combinamos a entrevista para aquela tarde.
Algumas horas depois liguei para o tal número e a mesma voz, só que mais relaxada e amistosa, me atendeu com um carinhoso “Oi, meu negô...tudo bem?”, um tratamento que, para um curitibano, me pareceu no mínimo suspeito. “Vamos combinar nosso papo para as 3. Vocês aparecem aqui com o gravador”. Quase desligando, emendou: “E não se esqueçam de trazer umas garrafas de vinho branco!”.
De tarde, ao lado do meu amigo Joel Sampaio, então repórter da Folha de Londrina, desci do ônibus no bairro Cruz do Pilarzinho, perto do pequeno estádio de futebol, e procurei a rua Jorge Khoury Brahim, 874. Subindo a rua, a primeira surpresa: a seqüência dos números das casas não fazia sentido algum. Lembrei de um poema dele que falava do louco que todo bairro tem. Quase no alto, identifiquei a casa que havia visto na foto da Veja. Leminski estava de camiseta e roupa branca, varrendo a varanda. Fomos recebidos calorosamente. Na entrada da sala da casa da Cruz do Pilarzinho, além das almofadas no chão e um ar meio hippie na decoração, a primeira coisa que me chamou a atenção foi um cartaz enorme emoldurado na parede e que trazia apenas uma palavra: OBA!
Falando orgulhosamente de suas recentes parcerias musicais, Leminski comenta sobre os três livros que estavam para sair pela Brasileinse: mostra a arte da capa de Caprichos e Relaxos, e fala animadamente sobre as biografias Matsuo Bashô e Cruz e Souza. Leminski pergunta sobre Londrina e diz de sua admiração por Domingos Pellegrini e Arrigo Barnabé (“barra-pesada”!). Sem ficar parado um minuto, Leminski mostra livros e mais livros, dele e de outros, comentando sobre tudo como uma metralhadora giratória. A entrevista rola entre fumaças e goles de vinho, com Leminski nos deixando completamente à vontade, como alguém que se conhece há muito tempo. Começamos falando sobre política: “Já fui marxista. Mas acho que tudo está amarradinho demais na teoria marxista. Hoje acho a ideologia nociva à poesia. Ela é apenas um dos instrumentos para se entender a realidade. A poesia é algo que deve obedecer apenas a sua sensibilidade e inteligência. Caras com ideologia têm respostas para tudo e eu não agüento mais pessoas que têm um estoque enorme de certezas. Eu quero é a incerteza, e o marxismo é só certeza, coisa que eu, aos 38 anos, não quero mais”.
Mudamos o papo para a MPB (que ele acredita estar passando por uma fase de infantilização), crítica, Caetano Veloso e, claro, poesia: “A boa poesia nunca se impõe num primeiro momento. Ela tem que se impor depois. A poesia é a surpresa, é o anti-discurso. A hora em que a boa poesia pinta na sua frente ela corre o risco de você achar que aquilo é ruim porque ela feriu uma série de automatismos de gosto. Não vejo consistência na poesia marginal. Você pode ser contra a poesia concreta, mas pelo menos ela tem o mérito dela ser clara”.
O telefone toca sem parar. Leminski agora trabalha em casa enquanto cuida de suas duas filhas pequenas, Áurea e Estrela. Estrela devia estar fazendo alguma arte, pois em certo momento é repreendida de um jeito que me chama a atenção: “Estrelinha, eu não estou gostando...Vou ter que tomar medidas drásticas: te ponho num campo de concentração!”. Pergunto sobre suas leituras, e ele comenta sobre a importância da poesia oriental e provençal e concreta, Pound, e de sua experiência no mosteiro beneditino em São Paulo. “A primeira influência que eu tive foi a poesia greco-latina. Aprendi Latim aos 14 anos”. Pergunto sobre a questão de ser poeta social, tema de um de seus poemas mais conhecidos ( “eu queria ser tanto/ um poeta maldito”): “Ah, isso me assombrou durante anos. Neste poema estou zombando de mim mesmo. No Terceiro Mundo a gente tem consciência pesada por ter almoçado e jantado. A felicidade geral do povo é da alçada de duas coisas: da administração pública ou da revolução. A poesia é absolutamente inadequada para fazer isso. Quando o poeta faz um poema social ele está querendo estar apenas dar um alívio para sua consciência de classe média. Poesia não é jornalismo, é uma outra coisa. Aliás, é uma outra substância. O Fidel, que não é poeta, tem uma frase muito interessante: ele diz que preferia um bom poema de amor a um mau poema político, porque o mau poema político desservia a revolução. A verdade é que a poesia articula muito mal no real histórico imediato”, fulmina, para nosso espanto. Pergunto sobre sua visão de poesia: “É o princípio do prazer na linguagem. A linguagem é o instrumento de pensar e de se relacionar com nossos semelhantes. É o que torna possível a vida social. Historicamente, existem povos sem prosa, mas não sem poesia. O povo mais atrasado da Austrália ou do interior da África tem seus cantos, suas fórmulas métricas, de encantamento”.
Leminski conta causos e mais causos, como o de um cara mutcho lôco que desembarcou em sua casa de táxi, chapéu de cowboy e mochila nas costas. “Pensei: putz, mais um vendedor!”. Era um professor do Novo México que queria discutir pessoalmente o Catatau, com umas cem perguntas anotadas num caderno. “O Catatau, sob alguns aspectos”, diz Leminski, “é uma tradução do Finnegan’s Wake, em termos do discurso louco”. Fala de seus encontros com Caetano, Mautner e Gil (Leminski estava embalado com o sucesso de “Verdura”, composição sua gravada por Caetano um ano antes). No meio da conversa, chega Alice, e a conversa continua ainda mais animada. “Vocês querem mais vinho?”.
Antes de irmos embora, já de noitinha, Leminski pede para ver alguns poemas meus e comenta sobre eles com generosidade. Convida-nos para tomar uma “sopa especial” (horrível, por sinal), que ele dizia ter inventado.

“A noite / me pinga uma estrela no olho / e passa”.

Vinte e cinco anos depois, só posso dizer que poucas vezes um encontro foi tão determinante para minha vida. Saí dali feliz, energizado, cheio de idéias e vontade de fazer coisas, principalmente viver a poesia. Certas frases me bombardeavam a cabeça, como “Eu sou um cara que defendo a ligação da vida e a poesia num grau máximo”, “Depois de atingir o artesanato do claro, quero o direito de ser obscuro”, “O lance agora é cada poeta fazer sua síntese particular”. Minha idéia estereotipada dos poetas como seres chatos, mal-humorados e pedantes havia caído totalmente por terra naquele encontro com Leminski. Nele, eu havia cruzado alguém capaz de provocar, com um imbatível bom humor, a poesia e a criatividade em quem estivesse à sua volta. Foram muitos outros encontros com Leminski nos próximos cinco anos: todos intensos e memoráveis, seja em Londrina, São Paulo ou em Curitiba, já nos últimos meses de sua vida, quando eu trabalhava no Nicolau. No entanto, aquele encontro, naquela tarde fria num bairro polonês em Curitiba, foi definitivo para mim.



Poesia = letra = imagem = música?


Desde que começou a ser posta no ar ou sobre uma superfície, a palavra poética foi sobretudo respiração e representação ("palavras são símbolos"). Dos ritos/mitos/ritmos ancestrais à poesia concreta e depois, essa especificidade “verbivocovisual” tem sido intrínseca à poesia. Por outro lado, dos rapsodos gregos aos repentistas e rappers, a linguagem da música e a música da linguagem têm uma longa tradição de aproximações e distanciamentos, de múltiplas inseminações, sendo tão ancestral quanto sua prática. As possibilidades do hipertexto e do computador só ressaltaram essa qualidade performática inerente a ela (um poema pode ser, simultaneamente, lido, ouvido e visualizado). Acredito que experiências multimídia, ou mesmo o registro oral de textos poéticos em forma de CD, ou ainda amparado pelas novas tecnologias digitais, são caminhos instigantes que se abrem para a poesia hoje. Embora a técnica ou tecnologia não garanta um bom poema: um poema holográfico ou computadorizado pode usar os recursos mais avançados e não dizer coisa nenhuma. Afinal, se poesia é a arte da palavra, carne de pensamento, ela tem que dizer alguma coisa, sob o risco de virar mero fetiche ou maneirismo. Contra-discurso num mar de discursos, em plena Idade Mídia, esse é maior desafio da poesia hoje.

Rodrigo Garcia Lopes

terça-feira, dezembro 25, 2007

FELIZ 2008

Oração à Brisa


brisa viva

que me queima

e teima em

sempre-vivas


brisa brisa

que me pulsa

brisa que me blusa

e nos abraça


brisa que reprisa

o vídeo das manhãs

beijo alisa a língua

brasa agora


comemora

obra-prima

que nos transa

que sabe dar bis

sem repetir-se


brisa nossa

nos evoca

sem pressa: bliss

enquanto possa


mínimos gestos

que nos mostram

a vida que nos toca

sexta-feira, dezembro 21, 2007

PLATH NA GERMINA

Saíram 3 traduções de poemas de Sylvia Plath na nova Germina Literatura que já está na rede. Link:

http://www.germinaliteratura.com.br/sp.htm

ARIEL, poema de SYLVIA PLATH



Estase no escuro.

E um fluir azul sem substância

De rochedos e distâncias.


Leoa de Deus,

Como nos unimos,

Eixo de calcanhares e joelhos !

O sulco


Reparte e passa, irmão do

Arco castanho

Do pescoço que não posso pegar,


Olhinegras

Bagas lançam escuros

Ganchos —


Goles de sangue negro e doce,

Sombras.

Algo mais


Me arrasta pelos ares —

Coxas, pêlos;

Escamas de meus calcanhares.


Godiva

Branca, me descasco —

Mãos mortas, mortas asperezas.


E agora

Espumo com o trigo, um brilho de mares.

O choro da criança


Dissolve-se no muro.

E eu

Sou a flecha,


Orvalho que voa

Suicida, e de uma vez avança

Contra o olho


Vermelho, caldeirão da manhã.





TRADUÇÃO RODRIGO GARCIA LOPES E MARIA CRISTINA LENZ DE MACEDO

EM ARIEL, (VERUS EDITORA, 2007)

Poema escrito em 1 de outubro de 1962. Na peça A Tempestade, de Shakespeare, Ariel é o o nome do espírito do ar. “Leão de Deus”, em hebraico. Nome do cavalo que a poeta costumava cavalgar quando morava em Devon. A nobre Lady Godiva, personagem da história anglo-saxã, teria desfilado nua sobre um cavalo pelas ruas de Coventry, cumprindo a promessa do marido de que ele abaixaria, a seu pedido, os impostos da população. A única pessoa que teria ousado olhá-la teria ficado cega, conforme a lenda.

quinta-feira, dezembro 13, 2007

CLANDESTINO (poema de Paul Auster, trad. Rodrigo Garcia Lopes)

CLANDESTINO



Lembrem comigo do hoje — a palavra

e contra-palavra

de testemunho: aurora tátil, emergindo

de meus punhos: o alcance

ciliar do sol: o trecho de breu

que escrevi

na mesa do sono.


O agora

é a hora que virá.

Todos vocês vieram

pra pegar de mim, levar embora

o agora de mim. Não

se esqueçam

de esquecer. Encham

os bolsos com terra,

E selem a boca

de minha caverna.


Foi ali

que sonhei minha vida

dentro de um sonho

de fogo.



CLANDESTINE


Remember with me today — the word

and counter-word

of witness: the tactile dawn, emerging

from my clenched hand: sun´s

ciliary grasp: the stretch of darkness

I wrote

on the table of sleep.


Now

is the time to come.

All you have come

to take from me, take

away from me now. Do not

forget

to forget. Fill

your pockets with earth,

and seal up the mouth

of my cave.


It was there

I dreamed my life

into a dream

of fire.



De Fragments from the Cold (1976-1977)


PAUL AUSTER

TRADUÇÃO: RODRIGO GARCIA LOPES


segunda-feira, dezembro 10, 2007

A TEMPESTADE

Detalhe do quadro "Cena de A Tempestade de Shakespeare, de William Hogarth


Canibal, palavra latina,

à maneira de canis, animal

de fidelidade canina.


Nas Bermudas, sublime ironia,

será um vento do cão

e vai se chamar hurracán.


E quando o mar de lã

de repente apontar terra à vista

Então será Caliban.



Rodrigo Garcia Lopes (de Visibilia, Travessa dos Editores, 2005)

.

sábado, dezembro 08, 2007

UM DIA


um dia
a gente ia ser homero

a obra nada menos que uma ilíada

depois
a barra pesando

dava para ser aí um rimbaud

um ungaretti um fernando pessoa qualquer
um lorca um éluard um ginsberg


por fim

acabamos o pequeno poeta de província
que sempre fomos

por trás de tantas máscaras
que o tempo tratou como a flores



PAULO LEMINSKI

sexta-feira, dezembro 07, 2007

PRIMEIRA FESTA NA CASA DE KEN KESEY COM OS HELL'S ANGELS, de Allen Ginsberg (trad. Rodrigo Garcia Lopes)



Noite negra e fria pelas sequóias

carros parados lá fora na sombra

atrás do portão, estrelas tênues sobre

o barranco, uma fogueira ardendo perto da

varanda e almas cansadas curvadas

em jaquetas de couro negro. Na imensa

casa de madeira, um candelabro amarelo

às 3 da manhã o estouro dos alto-falantes

hi-fi Rolling Stones Ray Charles Beatles

Jumping Joe Jackson e vinte jovens

dançando na vibração pelo chão da sala,

erva rolando no banheiro, garotas de malhas

vermelhas, um homem sarado e suave

suando e dançando por horas, latas de cerveja

em pilhas no quintal, a figura de um enforcado

balançando num galho alto sobre o riacho,

crianças dormindo sossegadas nos beliches.

E 4 carros de polícia estacionados no portão

recém-pintado, luzes vermelhas revistam as folhas.



Dezembro de 1965


First Party At Ken Kesey's With Hell's Angels


Cool black night thru redwoods

cars parked outside in shade

behind the gate, stars dim above

the ravine, a fire burning by the side

porch and a few tired souls hunched over

in black leather jackets. In the huge

wooden house, a yellow chandelier

at 3 A.M. the blast of loudspeakers

hi-fi Rolling Stones Ray Charles Beatles

Jumping Joe Jackson and twenty youths

dancing to the vibration thru the floor,

a little weed in the bathroom, girls in scarlet

tights, one muscular smooth skinned man

sweating dancing for hours, beer cans

bent littering the yard, a hanged man

sculpture dangling from a high creek branch,

children sleeping softly in their bedroom bunks.

And 4 police cars parked outside the painted

gate, red lights revolving in the leaves.


December 1965


ALLEN GINSBERG
Tradução: Rodrigo Garcia Lopes

quarta-feira, dezembro 05, 2007

MARXIANAS


Um gato preto cruzando seu caminho é sinal de que o bichano está indo a algum lugar.

*

Antes de falar, eu tenho alguma coisa importante para dizer.

*

Ou ele morreu ou meu relógio parou.


*

Do momento em que peguei seu livro até o momento em que o larguei, tive convulsões de riso. Um dia ainda quero lê-lo.

*

Ficar velho não é problema. É só viver tempo o bastante.


*

Suma daqui, e nunca mais suje minhas toalhas.

*

O humor é a razão que enlouqueceu.

*

Acho a televisão muito educativa. Cada vez que alguém liga a TV vou para outra sala e leio um bom livro.


*

Pretendo viver para sempre, ou morrer tentando.

*

Devo confessar, quando nasci eu era jovem demais.

*

Eu nunca esqueço de uma cara, mas no seu caso vou abrir uma exceção.

*


Me recuso a fazer parte de um clube que me aceite como sócio.

*


Vou embora porque o tempo está bonito demais. Odeio Londres quando não está chovendo.

*

Em Hollywood, as noivas ficam com o buquê e jogam fora o noivo.

*

Não é preciso ter parentes em Kansas City para ser infeliz.


*

Inteligência militar é uma contradição de termos.

*

Meu poema favorito é aquele que começa com “Trinta dias tem setembro” porque de fato ele diz alguma coisa.

*

Na próxima vez que eu te ver, me lembre de não lhe dirigir a palavra.

*

Nenhum homem está à frente de seu tempo – a menos que o patrão tenha ido embora mais cedo.

*

Fora o cachorro, um livro é o melhor amigo do homem. Dentro de um cachorro é escuro demais pra ler.

*

A política é a arte de procurar encrenca, encontrá-la em toda parte, diagnosticá-la incorretamente e receitar os remédios errados.

*

Serviço de quarto? Mandem um quarto maior.

*

Ela herdou os traços do pai. Ele é cirurgião plástico.


*

Em quem você vai acreditar, em mim ou em seus olhos?


*


Por que deveria me importar com a posteridade? O que a posteridade já fez por mim?



GROUCHO MARX

Tradução: Rodrigo Garcia Lopes

terça-feira, dezembro 04, 2007

PÓS / ESCRITO, de PATTI SMITH (trad. Rodrigo Garcia Lopes)

A roqueira e poeta norte-americana Patti Smith, em foto de Anne Leibovitz.
Pintura de Victor Vasarely


PÓS/ESCRITO


fui levada a um anfiteatro de porcelana branca em miniatura. os ladrilhos zunindo como escultura cinética, ondulando como os motivos coloridos de Vasarely. colunas formavam um amplo retângulo. no centro mortiço uma laje de mármore ajustada c/ montes de couro. eles a deitaram numa mesa. um cone verde desceu através da clarabóia, brisas de rosas pela janela aberta seu traje coberto c/ pétalas. cada mulher na história era ela, cada ventre na aventura. olhei no espelho. dei a luz à alexandre, fui sua amante. pintura de guerra formou-se em minha face, talhos ocres e lavandas. a mulher de jubas castanhas montou sobre ela. suas mãos delicadas operavam pequenos milagres. canos finíssimos de celulóide eram inseridos depressa nos poros da vítima, uma virgem. os canos, tentáculos se misturando em sua veias em sonhos bem fundo na luz virginal, o lago sob a memória. um fluxo rubi onde palavra alguma se forma. a rainha era uma deusa que amarrava em si mesma um mecanismo amoroso — um dispositivo adequado à penetração. um cilindro pontudo trançado de jóias. eu a empurrei o quanto pude. eu era o trono que ela montava. eu era o sêmem do destino, o conceito de reino. primeiro seria a picada, a luz, depois o beijo. um dilúvio de fios e vapores se soltando. não tive coragem de resistir à sua face ligando-se à minha. os gozos e silvos de um mamífero indo fundo.

— que desejas de mim? ela disse

— ondulando sob ela, gritei — lascívia!

— que desejas de mim, perguntei.

— linguagem, ela disse, linguagem.



AFTER/WORDS


i was led into a miniature amphitheatre of white porcelain. the floor tiles buzzing like kinetic sculpture, waving like the color patterns of Vasarely. columns formed a large retangle. dead center was a marble slab fitted w/a raft of leather. they laid her on the table. a green cone descended through the skylight, a draft of roses through the open window her costume was covered w/petals. every woman in history she was, and every womb in venture. i looked in the mirror. i gave birth to alexander, i was his lover. war paint formed on my face, ochre and lavender slashes. the woman w/the chesnut mane stood over her. her delicate hands worked small miracles. slender celluloid tubes were swiftly inserted into the pores of the victim, a virgin. the tubes were tentacles melding w/her veins her dreams and deeper into the virginal light, the pool beneath memory. a ruby flux where no words were formed. the queen was a goddess strapping to herself a love mechanism — a device designed for penetration. a pointed cylinder of jeweler's plat. i held back as long as i could. i was the throne she was mounting. i was the seed of destiny, the conceit of reign. first would be the poke, the light, and then the kiss. a flood of steam and wire released. i could not resist her face was connecting w/my own. the rush and hiss of a mammal going under.

— what do you want out of me? she said

— undulating beneath her I cried — lust!

— what do you want out of me, I asked her.

— language, she said, language.



PATTI SMITH

(De Babel)

Tradução: Rodrigo Garcia Lopes

segunda-feira, dezembro 03, 2007

A ETERNIDADE

Cape Lookout National Park, Carolina do Norte, outubro de 2007. Foto:RGL

Elle est retrouvée!
-- Quoi? -- L'éternité.
C'est la mer mêlée
Au soleil.



Foi reencontrada!

-- O que? -- A eternidade.

É o mar somado

Ao sol.




Arthur Rimbaud

Trad: RGL

domingo, dezembro 02, 2007

MANOEL CARLOS KARAM (1947-2007)



Acabo de saber que morreu, na madrugada de ontem, de câncer, no Hospital Nossa Senhora das Graças, em Curitiba, o escritor e jornalista Manoel Carlos Karam. Nascido em Rio do Sul (SC) tinha apenas 60 anos. Grande escritor e grande figura. Lembro dele quando frequentava a redação do Nicolau, em Curitiba, onde eu trabalhava em 1989. Publicamos um conto dele na Coyote, há uns dois anos.
Vai o homem, fica a obra:

  • Fontes murmurantes. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985
  • O impostor no baile de máscaras. Porto Alegre: Artes&Ofícios, 1992
  • Cebola. Florianópolis: FCC Edições, 1997
  • Comendo bolacha maria no dia de são nunca. São Paulo: Ciência do Acidente, 1999
  • Pescoço ladeado por parafusos. São Paulo: Ciência do Acidente, 2001
  • Encrenca. Cotia SP: Ateliê Editorial; Curitiba PR: Imprensa Oficial do Paraná, 2002
  • Sujeito oculto São Paulo: Barcarolla, 2004


MORRO DOIS IRMÃOS

Dois Irmãos, quando vai alta a madrugada
E a teus pés vão-se encostar os intrumentos
Aprendi a respeitar tua prumada
E desconfiar do teu silêncio

Penso ouvir a pulsação atravessada
Do que foi e o que será noutra existência
É assim como se a rocha dilatada
Fosse uma concentração de tempos

É assim como se o ritmo do nada
Fosse, sim, todos os ritmos por dentro
Ou, então, como um música parada
Sobre um montanha em movimento



CHICO BUARQUE DE HOLANDA