segunda-feira, agosto 27, 2007

NÔMADA OU A LIÇÃO DO DESERTO


O poeta carioca Franklin Alves escreveu há tempos uma resenha muita bacana sobre o Nômada (Lamparina, 2004). Ele a publicou agora na revista eletrônica Cronópios. Confira:




Nômada ou a lição do deserto


Por Franklin Alves






Em Nômada, última coletânea de poemas de Rodrigo Garcia Lopes, o leitor encontrará, atualizada, uma questão importante, e complicada, para a poesia: sua relação com a sociedade. Em outras palavras, qual o lugar ocupado pela lírica na sociedade contemporânea, marcada por guerras e pelo “lucrocentrismo”, na expressão certeira de Paulo Leminski. E Rodrigo parece encaminhar uma resposta através das perguntas do poema Rito, que denuncia o tempo acelerado de hoje, sem espaço para reflexões: “O que deu nesse mundo, caduco, / O que ficou do tempo em que viver / Era mais que só mudar de assunto / Era rito, um estado de espírito?”. Pouca coisa ficou, sabemos. Mas é na contramão deste cenário que a poesia funciona como lugar de resistência: “Não é moda: não precisa de marketing / pra dizer a que veio. / Veio, e veio só, na cilada da noite”. Fora dos esquemas do ver e ser visto, a poesia “Precisa dizer. / Como um celofane que se desa- / massa”, enfim dizer fazendo barulho e “Não como certas músicas baratas / baladas que não dizem nada / fazendo companhia para o som do ar- / condicionado”, como lemos em Ars poetica.


No confronto com a sociedade, a poesia precisa dizer, ser um lugar de resistência, porém consciente das dificuldades que serão encontradas no caminho, ou seja, a barbárie e a destruição. Daí, a escolha da queda das torres gêmeas, imagem que vai se tornar um dos signos desta época desvairada, e, portanto, um dos signos do livro. Setembro negro é, neste sentido, um poema exemplar: “Havia um paralelo misterioso, um mundo / entre a simples queda de uma folha de papel / e a reminiscência veloz que num segundo / nos levou para algum lugar, zoom, canto de céu”. Num céu, agora digital, o evento transmitido ao vivo destrói qualquer possibilidade de sonho e de afeto – estamos sozinhos, é o que a última estrofe do poema nos quer dizer: “Da queda o que ficou foram gritos & ruídos, / E densa nuvem de carne e poeira no céu da tela / Não a ternura que habitava a sua voz / (A sensação de que algo se rompeu) / Solidão, recife, estrela”. A imagem da queda, que se repete em Instantâneos contemporâneos (“poeira de metal e carnes prédios desabando”) e no poema Paulicéia revisitada (“Falésia-edifício que despenca sem ruído e mergulha em sua poeira paranóica”), anuncia um outro momento importante de Nômada, onde a mentalidade turbulenta dos dias de hoje é questionada.


Nesta parte do livro, Viagens à hiper-realidade, o poeta confronta-se com a “estranha lógica do mundo” e conclui que quase nada mais resta, além de “estar aqui entre gritos neste estado de sítio / descobrir que foi a vida que mentiu”, lemos em Instantâneos contemporâneos. E no confronto descobre também, num poema sem título, que “Na galeria milênio / fim dos tempos / contempla / dias clonados / iguanas de plástico / carros-bomba / reflexos sem nexo”.


Neste estado de sítio, de dias clonados, a irracionalidade apresenta sua lógica, outra descoberta nada agradável em outro poema sem título: “O bambu sonhou-se em vídeo digital”; “Jovem morre depois de 82 horas jogando videogame em Saigon”; “A.havia se apaixonado pela secretária eletrônica de Z”. Porém, qualquer observação do social que não esteja articulada com o texto literário acaba esvaziada da crítica que toda literatura precisa ter. Rodrigo não comete este erro. Os dois últimos poemas citados são bons exemplos: tanto no verso elíptico do primeiro, que tenta reproduzir uma certa fragmentação da “Galeria milênio”, quanto na enumeração do segundo, que representa o bombardeio diário de imagens e informações, há uma tensão entre forma e matéria, enfim, entre lírica e sociedade. Zeitgeist resume este movimento, quando, também através da enumeração, nos indica a maneira ácida de ser e, sobretudo, a maneira de portar-se hoje: “Arrebentando a boca da razão com denúncias inconseqüentes / Estrangulando docemente a tarde carregada de câmeras de vídeo & trance music / (...) Rifando o shopping lotado de idéias fixas com um grito de jihad”.

“Não há beleza / quando carnes / se exibem / abertas e podres / como prova / irrefutável / de que não há beleza / onde o mau / do humano / esteja”, afirma um poema de Nômada. Uma pergunta faz-se, então, necessária: há ainda lugar para o humano, lugar que não seja cidade sitiada? A última parte do livro tenta responder tal pergunta: há sim um lugar possível, o deserto – lugar não colonizado que Rodrigo elege como signo de resistência, como alternativa às contingências do presente. Nesta mudança temática temos, sobretudo, uma mudança na forma dos poemas: do corte do verso, que tenta reproduzir uma fragmentação, à sintaxe do poema em prosa, de caráter mais narrativo. Assim, o deserto torna possível o tempo para reflexões, pois, ao contrário das cidades, lá “(...) há sempre os fios de areia a indicar a direção do tempo”. O deserto também possibilita uma aproximação transformadora com a natureza, conforme lemos em Música deserta: “Você, chuva, com sua festa de diferenças, seu carnaval de sons-imagens, seu brilho sábio e tranqüilo, faz de mim um homem virando chuva. Talvez agora você possa ser gente novamente”. E, ainda, proporciona um modo diferente, e mais interessante, de olhar as coisas em Goitacá: “Há algo espantoso no jeito como, de repente, luzes se fixam nas cores, fazendo os objetos, antes que escorressem para as margens nos chamando, se animarem”.

Entretanto, aquilo que mais sobressai na leitura do “deserto” é o movimento insistente da repetição: sempre o mesmo, nunca o mesmo, afirmaria um nômade. “Lua Cheia. Lua nova. Os nômades avançam, sobre o mesmo deserto”, lemos em A caravana. E na mesma direção, o poema Mawqif, quando diz que “Nada muda pro nômade sem nome: anos vadiando, mesmo deserto”. Eis seu rito e, principalmente, sua maior lição: não há, aqui, a necessidade perturbadora da novidade, do sempre novo consumista, uma vez que, paradoxalmente, o novo é o mesmo e depende de outros movimentos: “Deslocar é retirar algo do nada em que se encontrava. Transferir é ferir em trânsito, passar para outro corpo, luz que se desprega do azul. Processo é seguir, marcha da sensação do que acontece, metamorfoses sem fim”, nos ensina a viagem quase-etimológica d’O mapa dos lugares. Porém, é no poema Memória e repetição, também incluído no livro de anterior de Rodrigo, Polivox, que a lição do deserto fica mais exata, mais enfática: “Repetição é uma forma de mudança. Mudança é uma forma de vida. Vida é uma forma de repetição. E a mensagem passa a ser apenas o vestígio de uma contínua mudança. A dança do mesmo. Uma forma de repetição”. É a poesia, escrita nômada, que nos permite observar que até o mesmo é movimento – lição para uma sociedade que não acredita mais no “estado de espírito”, na experiência. Eis o que Nômada nos faz pensar.



Franklin Alves (Niterói/RJ, 1973) é poeta e mestrando em Literatura Brasileira e Teorias da Literatura na UFF. Participa, na mesma universidade, com bolsa do CNPq, do grupo de pesquisa Poéticas da contemporaneidade, coordenado pela professora Celia Pedrosa. Tem um livro, ainda inédito, chamado Céu vermelho.


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