Tudo deve se passar nos meses que se seguem ao fim da segunda guerra. Perdi meu corpo na batalha, mas me deram um outro, imenso e desengonçado, cheio de tatuagens e cicatrizes, que eu estudo num espelho, como quem lesse um livro. Devo estar em algum campo de refugiados, numa cabana caindo aos pedaços, que divido com um soldado de nacionalidade indefinida e uma moça que só se comunica por sinais e que com certeza foi estuprada centenas de vezes. Ela está cheia de hematomas e marcas de picadas nos braços. Ela tem medo do soldado, ele a ameaça a estuprar novamente. Da cabana, pela janela, vejo os soldados americanos dançando em volta de uma fogueira, bebendo, como uma fraternidade de filmes de Hollywood. Um homem parecido com Ezra Pound passa por ali. Dizem para que eu não me aproxime dali, e xingo quem disse isso, em russo, embora não a veja a pessoa. Deve ter sido o Pound, que está com um rosto sofrido e arrasta um cobertor enlameado. John Wayne lidera a cantoria. Idiota. Fecho a janela e ela desaba do lado de fora. Tenho em meu pulso um relógio que também deve ter pertencido ao corpo do morto em batalha, o corpo que perdeu a vida e que foi dado a mim, como algum prêmio sinistro por ter dado o meu corpo na batalha. Só não me perguntaram se eu queria este prêmio. Eu preferia ser pura alma. Olho novamente para o visor do relógio digital. É um relógio especial, e também parece ter sido atingido por estilhaços de bomba. Aperto um pequeno botão e imagens a princípio riscadas e trêmulas começam a aparecer. São cenas de guerra, de cidades devastadas, de imensos exércitos se movimentando pela neve, e muitas pilhas de cadáveres sendo incinerados e varridos da existência, para que desocupem o campo de batalha e permitir o avanço das tropas. As cenas se tornam embaçadas, no visor riscado, mas reconheço muitos de meus companheiros pegos no momento da morte. No exato instante em que estou vendo estas cenas no pequeno visor, tentando entender o que aconteceu comigo, meu companheiro de cabana entra e desligo o relógio. Ele franze a sobrancelha, sei que desconfia de mim, por não saber minha nacionalidade, mas não posso me revelar, nem eu mesmo sei a que exército pertenço. Sei que estamos esperando a transferência para uma região mais ao norte, quem sabe Sibéria. Eu pareço uma mistura de índio com esquimó. Sei que sou muito forte, como uma espécie de soldado mutante. Sei que sou precioso, talvez um agente secreto cujas informações foram apagadas através de uma lavagem cerebral, mas quem me deu este corpo tentou apagar as pistas para que eu não descobrisse minha verdadeira origem. Mas as pistas estão em mim, inscritas em cada centímetro de minha pele dura como a de um crocodilo. Meu companheiro de cabana desconfia de mim, quem sabe, por não acreditar como um homem com tantas cicatrizes e hematomas (algumas delas repartem minha carne ao meio) conseguiu sobreviver a tudo isso. Mas sobrevivi. Tento me comunicar com ele mas ele é um camponês bruto e só pensa em cheirar cocaína. Ele se senta numa cadeira caindo aos pedaços, estende duas carreiras gordas e me convida. Tento ser solícito e aceito apenas uma vodka, que ele despeja num copo fétido., até a boca. A moça está presa por uma algema numa das pernas da cama e me lança um olhar de súplica. Cortaram sua língua. Ela ainda sangra no chão do quarto.
O piso da cabana é de madeira podre, e ele cede a cada passo, dando a impressão de que a qualquer momento o escuro espaço por debaixo vai nos engolir. Olho novamente para o relógio, fora do alcance do olhar do bruto camponês, e penso que ele na verdade ele está mais para um checheno, ou até mesmo um turco, pelos seus traços e pele escura. Ele sai novamente e ligo para Maurício vir me pegar. Maurício atende e diz que está com Bernardo. Ambos estão indo para uma festa. Eu digo, filhos da puta, eu me fodendo neste sonho, no corpo de um homem que não conheço, e vocês indo se divertir. Maurício desliga o telefone na minha cara e ligo novamente. É um daqueles telefones militares, usados para passar mensagens em meio a campo de batalha. Maurício atende, soltando uma gargalhada. Outras pessoas estão rindo dentro do carro que ele dirige, e uma das risadas eu reconheço como sendo da moça que eu namorava até ser convocado para esta guerra insana. Peço sua posição, dou as coordenadas, usando todo o jargão militar, e, pelo que ele me diz, não está distante de Kiev, o bairro de refugiados onde me encontro, o bairro onde decidiram guardar os homens dos exércitos sem pátria, enquanto decidem o que fazer conosco. Insisto com ele, digo que não custa nada ele vir me pegar, e ele finalmente se convence que o melhor a fazer é me resgatar. Aviso que eles não irão me reconhecer pois eu perdi meu corpo original, estou usando o corpo de um homem grandalhão que perdeu a vida na guerra. Um selvagem. Descrevo-me para que ele me reconheça quando eu estiver na esquina bombardeada onde combinei o encontro. Explico que deram-me este corpo substituto porque eu não merecia ter morrido. Maurício passa as informações para Bernardo, e mesmo ele tendo abafado o bocal do fone, escuto as risadas altas do grupo dentro do carro. Filhos da puta. Não acreditam em mim. Enquanto espero o jipe militar me aproximo do espelho grande e quebrado do quarto da cabana puída e fico estudando as estranhas tatuagens que trago pelo corpo todo, e tento descobrir a origem do homem que forneceu a matéria-prima física para eu continuar existindo. Um sinal de Rosa-Cruz nas costas. Uma serpente imensa em meu braço esquerdo. O nome de uma mulher em cirílico.
A porta da cabana se abre novamente, não é ninguém. Mesmo assim, pressinto que alguém entrou, quem sabe uma alma. Sinto uma lufada de ar. Quem sabe a minha alma. Olho novamente para o relógio e vejo no visor mais cenas do conflito que acaba de acontecer, e percebo que eu estava do lado dos que perderam a batalha. Ainda escuto os soldados americanos em volta da fogueira, cantando canções estúpidas, liderados por um John Wayne de mais de dois metros de altura. Mas eu me olho no espelho e vejo que meu aspecto é grotesco o suficiente para meter medo em qualquer um, até em mim mesmo. Meu cabelo negro e espesso se cola em minha testa. Não devo tomar um banho há alguns meses. Meu cheiro me enjoa. Mas não há água em lugar nenhum. Os meus músculos doloridos, eu sei, trazem uma história de violência. Tenho a absoluta certeza, naquele momento, de que matar, para mim, é algo que já devo ter feito muitas e muitas vezes. Se ao menos eu pudesse me lembrar. Me concentro em meu objetivo naquele instante, que é odiar Jolhn Wayne e decido que o canalha merece morrer. Acho que posso fazer isso antes de Mauricio chegar. Ele e todos os soldados americanos sorridentes cantando suas cançõezinhas estúpidas. Mato a vodka toda, bebo direto no gargalo e jogo a garrafa no espelho que não precisarei mais usar. Parece água para mim. O que estou fazendo agora é carregar meu imenso corpo e ir em direção à fogueira, sob os olhos assustados dos que me vêem passar, inclusive meu companheiro de cortiço, que chega arrastando sua prisioneira como uma boneca de pano puído, quando a buzina do jipe toca do lado de fora da cabana. Vieram para me pegar. Danem-se. Decido que a prioridade é liquidar John Wayne e aqueles soldadinhos gringos de merda, aqueles cuzões. Eles vão pagar caro por terem me acordado. Deviam saber que odeio a luz do sol.
O piso da cabana é de madeira podre, e ele cede a cada passo, dando a impressão de que a qualquer momento o escuro espaço por debaixo vai nos engolir. Olho novamente para o relógio, fora do alcance do olhar do bruto camponês, e penso que ele na verdade ele está mais para um checheno, ou até mesmo um turco, pelos seus traços e pele escura. Ele sai novamente e ligo para Maurício vir me pegar. Maurício atende e diz que está com Bernardo. Ambos estão indo para uma festa. Eu digo, filhos da puta, eu me fodendo neste sonho, no corpo de um homem que não conheço, e vocês indo se divertir. Maurício desliga o telefone na minha cara e ligo novamente. É um daqueles telefones militares, usados para passar mensagens em meio a campo de batalha. Maurício atende, soltando uma gargalhada. Outras pessoas estão rindo dentro do carro que ele dirige, e uma das risadas eu reconheço como sendo da moça que eu namorava até ser convocado para esta guerra insana. Peço sua posição, dou as coordenadas, usando todo o jargão militar, e, pelo que ele me diz, não está distante de Kiev, o bairro de refugiados onde me encontro, o bairro onde decidiram guardar os homens dos exércitos sem pátria, enquanto decidem o que fazer conosco. Insisto com ele, digo que não custa nada ele vir me pegar, e ele finalmente se convence que o melhor a fazer é me resgatar. Aviso que eles não irão me reconhecer pois eu perdi meu corpo original, estou usando o corpo de um homem grandalhão que perdeu a vida na guerra. Um selvagem. Descrevo-me para que ele me reconheça quando eu estiver na esquina bombardeada onde combinei o encontro. Explico que deram-me este corpo substituto porque eu não merecia ter morrido. Maurício passa as informações para Bernardo, e mesmo ele tendo abafado o bocal do fone, escuto as risadas altas do grupo dentro do carro. Filhos da puta. Não acreditam em mim. Enquanto espero o jipe militar me aproximo do espelho grande e quebrado do quarto da cabana puída e fico estudando as estranhas tatuagens que trago pelo corpo todo, e tento descobrir a origem do homem que forneceu a matéria-prima física para eu continuar existindo. Um sinal de Rosa-Cruz nas costas. Uma serpente imensa em meu braço esquerdo. O nome de uma mulher em cirílico.
A porta da cabana se abre novamente, não é ninguém. Mesmo assim, pressinto que alguém entrou, quem sabe uma alma. Sinto uma lufada de ar. Quem sabe a minha alma. Olho novamente para o relógio e vejo no visor mais cenas do conflito que acaba de acontecer, e percebo que eu estava do lado dos que perderam a batalha. Ainda escuto os soldados americanos em volta da fogueira, cantando canções estúpidas, liderados por um John Wayne de mais de dois metros de altura. Mas eu me olho no espelho e vejo que meu aspecto é grotesco o suficiente para meter medo em qualquer um, até em mim mesmo. Meu cabelo negro e espesso se cola em minha testa. Não devo tomar um banho há alguns meses. Meu cheiro me enjoa. Mas não há água em lugar nenhum. Os meus músculos doloridos, eu sei, trazem uma história de violência. Tenho a absoluta certeza, naquele momento, de que matar, para mim, é algo que já devo ter feito muitas e muitas vezes. Se ao menos eu pudesse me lembrar. Me concentro em meu objetivo naquele instante, que é odiar Jolhn Wayne e decido que o canalha merece morrer. Acho que posso fazer isso antes de Mauricio chegar. Ele e todos os soldados americanos sorridentes cantando suas cançõezinhas estúpidas. Mato a vodka toda, bebo direto no gargalo e jogo a garrafa no espelho que não precisarei mais usar. Parece água para mim. O que estou fazendo agora é carregar meu imenso corpo e ir em direção à fogueira, sob os olhos assustados dos que me vêem passar, inclusive meu companheiro de cortiço, que chega arrastando sua prisioneira como uma boneca de pano puído, quando a buzina do jipe toca do lado de fora da cabana. Vieram para me pegar. Danem-se. Decido que a prioridade é liquidar John Wayne e aqueles soldadinhos gringos de merda, aqueles cuzões. Eles vão pagar caro por terem me acordado. Deviam saber que odeio a luz do sol.
Sonhado na mente em 18/11/2009
Um comentário:
Gostei desse sonho Rodrigo, dá um filme bacana: o Aleph no relógio, o corpo que não é seu, a alma arrombando a porta, a moça no pé da cama.
Também acho, que no final, John Wayne deve morrer.
bj,
Anônima que não lhe é estranha.
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