quarta-feira, novembro 29, 2006

Dois poemas de PAUL AUSTER



PEDREIRA


Nada mais que a canção disto. Como se
só o canto tivesse nos trazido
até este lugar.

Temos estado aqui, e nunca estivemos aqui.
Estivemos a caminho até o lugar onde começamos,
e estivemos perdidos.

Não há fronteiras
na luz. E a terra
não nos deixa palavra alguma
pra cantar.

Pois o desmoronar da terra
sob os pés
é música em si, e caminhar entre estas pedras
é ouvir a gente mesmo
apenas.

Canto, logo, nada,
como se isso fosse o lugar
para onde não volto --

e se voltasse, descontava a minha vida
nessas pedras: esquecer
que um dia estive aqui. O mundo
me caminha

além do meu alcance.





QUARRY

No more than the song of it. As if
the singing alone
had led us back to this place.

We have been here, and we have never been here.
We have been on the way to where we began,
and we have been lost.

There are no boundaries
in the light. And the earth
leaves no word for us
to sing. For the crumbling of the earth
underfoot

is a music in itself, and to walk among these stones
is to hear nothing
but ourselves.

I sing, therefore, of nothing,

as if it were the place
I do not return to --

and if I should return, then count out my life
in these stones: forget
I was ever here. The world
that walks inside me

is a world beyond reach.





FRAGMENTO DE FRIO



Porque ficamos cegos
no dia que se apaga conosco,
e porque temos visto nosso hálito
nublar
o espelho do ar,
o olho do ar vai se abrir
em nada a não ser na palavra
que renunciamos: inverno
terá sido um lugar
de amadurecer.

Nós que viramos os mortos
de outra vida, não a nossa.






FRAGMENT FROM COLD



Because we go blind
in the day that goes out with us,
and because we have seen our breath
cloud
the mirror of air,
the eye of the air will open
on nothing but the word
we renounce: winter
will have been a place
of ripeness.

We who become the dead
of another life than ours.




Paul Auster (De Fragments from the Cold (1976-1977))
Tradução: Rodrigo Garcia Lopes

segunda-feira, novembro 27, 2006

TRANCE MUSIC

Não perde o tempo entre os riffs dessa noite
mais distante que um DJ em transe
Voz rouca segue a linha do baixo, baixe a sanha,
Circule entre senha e groovie
Entre estrelas & champanhe.

Pouco a pouco
O calor liga você.

Como nos pegam de surpresa, sons,
e das vezes em que nos
acuam
Ou suspendem
o branco
com o charme de um grito.

Seara de sorrisos, só isso aqui parece não virar mercadoria.

Talvez mulheres líquidas, ou ícones que se desmancham ao toque da tecla

Delete Cartago,

pois o sonho é só veloz
o solo só é veraz
Se entra na primeira

esquina intuitiva e se
na sintaxe da levada

o Excêntrico Sr. Sentido venha junto,
taxiando

o que quer que vida seja, tensão de arroios,
e o quer que não seja também,
chá de cereja sob uma lua que viceja
nos quatro céus desta canção.





sábado, novembro 25, 2006

Idéia De Camiseta


EU NÃO MUDO.

EU SOU SURDO.





Creta, janeiro de 1984



voltando pela praia

as pegadas na areia

são as minhas



(de Solarium, Iluminuras, 1994)

Há Anos Vende Seu Peixe





Há anos vende seu peixe
podre
seu suflê de vísceras
para vegetarianos sem o menor senso de humor.

Há tempos leciona
o dialeto do caos
dá conselhos ao sol
vende orquídeas escritas com
seu sangue
para vampiros que têm medo do vermelho.

Há séculos ele pratica
a extinta arte da pluviometria
fabrica idéias inúteis
conta os carros da esquina
compondo um poema longo e atroz.

Há minutos ele liga
Para uma secretária eletrônica
Que repete, estranho, exatamente
A gravação de sua própria voz.




(De Nômada, Lamparina, 2004)

Homem-Chama (segundo Richard Pryor)

"Quando você está pegando fogo

E correndo como um doido pela rua

As pessoas evitam seu caminho.

Menos um velho vagabundo

que grita pro homem estranho

Tem fogo aí, amiguinho?"


(sobre uma gag de Richard Pryor)
Deus dorme na pedra
Sonha na planta
Se mexe no animal
E acorda no homem



Ibn Al Arabi, místico sufi, séc. 12

Mantra




Vento sedento de espaço

Vento sedento de espaço

Vento sedento de espaço

Pedra sedenta de tempo


terça-feira, novembro 21, 2006

O Rumor das Máquinas Crescia (de Severo Sarduy)


O RUMOR DAS MÁQUINAS CRESCIA


O rumor das máquinas crescia
Na sala contígua: já minha espera
De um adjetivo—ou de teu corpo—não era
Mais que a intenção de encurtar o dia.

A noite que chegava e precedia
O vento do deserto, a certeira
Luz—ou teus pés nus na esteira—
do ocaso, seu tempo suspendia.

Não recordo o amor e sim o desejo:
não a falta de fé, e sim a esfera—
Imagem confrontando seu reflexo

com a textura branca, verdadeira
página—ou teu corpo que inda releio—;
vasto ideograma da primavera.




Tradução: Rodrigo Garcia Lopes

the eye of the hurricane

inside the old school

segunda-feira, novembro 13, 2006

William S. Burroughs - Thanksgiving Prayer

Burroughs lendo um poema em forma de oração pelo Dia de Ação de Graças.

Oração ao Dia de Ação de Graças, de William S. Burroughs

Para John Dillinger, na esperança de que ele ainda esteja vivo. Dia de Ação de Graças, 28 de novembro de 1986.



Obrigado pelo peru e pelos Pombos Correios, destinados a serem cagados por saudáveis tripas americanas
Obrigado por um continente para se pilhar e se envenenar
Obrigado aos índios, por nos abastecerem com uma quantia módica de perigo e desafio
Obrigado pelas vastas manadas de bisões para se matar e se escalpelar, deixando as carcaças apodrecerem
Obrigado pela recompensas por lobos e coiotes
Obrigado pelo Sonho Americano, por tudo vulgarizar e falsificar até que as mentiras nuas resplandeçam
Obrigado à Ku Klux Klan, por tiras assassinos de negros acariciando as marcas na coronha...por mulheres decentes e carolas, com suas faces amarradas, amargas e más
Obrigado por adesivos tipo “Mate um viado em nome de Cristo”
Obrigado pela AIDS criada em laboratório
Obrigado pela Lei Seca, e pela Guerra Contra as Drogas
Obrigado por um país que não deixa ninguém tomar conta de seus próprios assuntos
Obrigado por uma nação de dedos-duros, é....
Obrigado por todas as lindas lembranças, “tudo bem, maluco, pode ir mostrando os bracinhos! “... você sempre foi uma dor-de-cabeça e um pé no saco
Obrigado
Pela maior e última traição
Do maior e último dos sonhos humanos



Tradução: Rodrigo Garcia Lopes

Em Vozes & Visões: Panorama da Arte e Cultura Norte-Americanas Hoje (Editora Iluminuras, 1994, com entrevistas com Roy Lichtenstein, Meredith Monk, John Cage, Allen Ginsberg, Burroughs, Laurie Anderson, Amiri Baraka, Marjorie Perloff, Lawrence Ferlinghetti, Michael McClure, John Ashbery, Wanda Coleman, Nam June Paik, entre outros)