"Storm the Reality Studio, and retake the universe" ("Assaltem o Estúdio Realidade, e retomem o universo") WILLIAM S. BURROUGHS
quinta-feira, setembro 17, 2020
Primeira leitura de "O Enigma das Ondas (lançamento Editora Iluminuras), por Ronald polito e Jardel Dias Cavalcanti
NO DIGESTIVO CULTURAL: Partilha do Enigma: poesia de Rodrigo Garcia Lopes Jardel
Dias Cavalcanti
COLUNAS Terça-feira, 29/9/2020 Partilha do Enigma: poesia de Rodrigo Garcia
Lopes Jardel Dias Cavalcanti + de 100 Acessos Este texto, escrito a quatro mãos
por Jardel D. Cavalcanti e Ronald Polito, que trata de O enigma das ondas, novo
livro de poemas de Rodrigo Garcia Lopes, publicado pela Iluminuras, quer ser uma
conversa, um diálogo, não uma resenha. Não busca ser sistemático, prefere ser
seletivo, fragmentar. Poderia ser estendido, mas é sua intenção a incompletude,
a lacuna, o segmento. É um modo de deixar a palavra em aberto, como nos poemas
de Rodrigo Garcia Lopes. Ronald, creio que em boa parte do livro do Rodrigo há
uma tensão entre uma prosa que se quer poética e uma prosa que é de fato poema.
Essa tensão é comum na poesia moderna, inclusive, creio que a domina de canto a
canto. Não é um problema, já que o que se quer nessa prosa poética é captar o
pré-poético de uma situação e jogá-lo na onda do poético. Veja-se o caso do
poema “Aéreo reverso”, onde a palavra “surfista” e o próprio ato de surfar
apresentam uma relação comum. Fazer a palavra surfista surfar talvez seja o
objetivo máximo do poema. Para tanto, o poeta precisa dos elementos prosaicos da
aventura do surfista para desencadear as relações possíveis entre palavra e
ação. O ritmo próprio da ação de surfar vai fazer o poema ganhar também um ritmo
parecido com o da prancha sobre as ondas. E é como se a palavra surfista
reaparecesse em movimento próprio como que surfando também, como podemos ver nos
versos seguintes: “A palavra surfista ressurge do spray da casa de vidro/ rasga
a muralha esmeralda/ em uma manobra/ clássica/ corta por dentro/ Uma vez mais/
atinge o lábio da onda/ e voa.” Uma tentação seria Rodrigo ter colocado os
versos na página no formato de um “S perfeito”, movimento pelo qual a palavra
surfista escala a onda do poema. O interesse por fazer o sentido residir no
próprio processo da experiência da criação nesse poema faz com que os versos
possam sustentar uma densidade ornamental na página em branco, não sendo
acometidos por um adormecimento dos significados. Por isso, a transposição da
força e do dinamismo da narração do ato de surfar avança em direção a uma
“esvoaçante” elaboração de imagens. Daí o recurso a meios rítmicos e cadências
não prosaicas. Aqui o tom, a velocidade e a entonação são exigências para se
quebrar o prosaísmo do poema. Isso acontece porque a cadência do poema controla
nossa leitura, nos retirando imediatamente da veleidade da prosa e nos jogando
nos interstícios do poema. Jardel, outros poemas do livro buscam realizar o que
você anotou, fazer com que a disposição das palavras (“fazer a palavra surfista
surfar”) materialize a ideia, quando forma é conteúdo, o que é o cerne da arte.
“Sextina: o Dia da Marmota”, por exemplo, é uma bela solução formal para
materializar a paralisação do tempo. Creio que não é o caso de prosseguir essa
enumeração, temos mais questões a abordar. Outro aspecto que me parece
particularmente bem realizado é o jogo entre a dicção e a forma “cultas”, por um
lado, e, digamos, a oralidade, as palavras comuns da fala cotidiana, o
aparentemente não poético, por outro, como na “Sextina” já citada, reunindo, a
um só tempo, o traço que você salientou e o que estou abordando agora. Isso abre
uma série de considerações. Podemos pensar no quanto a poesia beat impregna a
obra de Rodrigo ao longo de sua trajetória. Podemos ainda anotar como ele é um
dos melhores leitores de Leminski entre nós, sem ser epígono. E talvez
principalmente como ele soube digerir o pop, a poesia marginal etc. sem se
reduzir a esse figurino estrito em que tantos incorrem no Brasil. Isso porque,
em contrapartida, Rodrigo é um poeta de formação erudita e ele não abre mão
disso. Ainda bem. O trato com as formas fixas, metros, rimas, presente desde seu
primeiro livro e exacerbado neste que está lançando, a prática da tradução de
textos de tradições variadas, tudo isso cria exigências próprias, obriga o poeta
a não fazer concessões, poesia fácil, palatável e adolescente, fricotes de
classes médias. E exige que o leitor vá além da diversão rumo aos problemas que
uma poética deve encerrar. Entre tantos exemplos, o “Short Cuts: epigramas”,
retomando a grande tradição latina, Catulo, Marcial, utiliza uma forma canônica
para disparar dardos no alvo contra a poesia fácil e engraçadinha, a política
mesquinha, a realidade aterradora desse país, o mundo literário e suas
questiúnculas, a culminar em um “Epitáfio” autocrítico. Ronald, bem corretas
suas observações. É um livro grande, com interesses diversos na criação dos
poemas. Voltarei a insistir na tensão dentro do livro entre os elementos de
natureza poética e os de natureza prosaica. Veja-se, por exemplo, poemas como
“Selvageria” e “Últimas notícias”. São uma espécie de poema-noticiário-denúncia,
que envolve a realidade, elencando problemas de natureza política bastante
referenciais ao contexto atual. Os poemas não avançam para uma dicção menos
objetiva, encadeando-se como trechos do noticiário que ouvimos todos os dias
pelas mídias contemporâneas. A poesia não sofre o atropelo da realidade, ela
apenas mapeia suas complicações, padecendo de uma insuficiência formal e sendo,
por isso, pura comunicação. O poder de duplicar a realidade torna dócil o poema.
Se a apresentação abrupta dos problemas sociais nos perturba, o papel da poesia
difere da comunicação do choque no sentido de que precisa ter mais do que
eficácia. Para quem gosta de poesia, a falsidade eloquente vale mais do que a
supérflua realidade dos fatos. Diferente de poemas como “Solstício”, cuja
matéria-prima poética pode nos lembrar Rimbaud (amplamente traduzido por
Rodrigo), pela formalidade do impulso de fazer poesia através de um aglutinar de
imagens. Ou o poema “Uma rápida visita”, muito próximo da dicção de Sylvia Plath
(também traduzida por Rodrigo), onde, “o inesperado faz-nos esquecer o
lugar-comum”. Ainda podemos citar o poema “Dreamscape”, onde a realidade é
obscura, não mapeada, mas temos o seu efeito presente, como podemos ver nos
primeiros versos: “Ir além de mim/ Num tapa// A tal realidade alterada/ Não está
em nenhum mapa// Tão nublado agora/ Que poderia ser noite”. O que se segue no
poema é uma espécie de pesadelo onde o real se apresenta como surreal. Outro
poema – aliás, um dos grandes poemas do livro -, onde a realidade da guerra se
apresenta totalmente, sem precisar estar descritivamente ali, é “Polônia, 1945”.
Além desses poemas, há evidentemente outros muito bem realizados que poderíamos
citar. Polônia, 1945 Apanhando lenha na linha do horizonte vejo ponto negro.
Homem atravessando campo nevado e sem som. Por um minuto pensei ser meu pai
voltando para mim. Jardel, concordo com você. Os trabalhos de Rodrigo que são
uma espécie de “poema-noticiário-denúncia” ecoam inumeráveis tentativas de
outros poetas no Brasil contemporâneo. A lista seria enorme. E nenhum desses
poetas consegue realizar formalmente uma transfiguração do que nos cerca. Os
noticiários de todo dia conseguem ir muito além de qualquer frase chocante que
alguém possa elaborar. A realidade atropela a linguagem. É impossível épater,
impressionar, chocar, espantar tentando duplicar o horror, os meios teriam de
ser outros e eu não sei quais são, tenho apenas vagas ideias sobre isso.
Observo, ainda, que Rodrigo já havia trabalhado essa perspectiva em livros
anteriores, como Nômada e Experiências extraordinárias, sem alcançar melhores
resultados. Onde ele inova e realiza muito bons poemas é quando se dedica a
temas que tocam na relação entre o homem e a natureza. Como no caso das ondas
que intitulam seu novo livro. Aqui também ela está dando desenvolvimento a algo
que cruza boa parte de seus livros. Leiam-se os excelentes poemas sobre o mar, a
praia e as ondas em Visibilia, que ocupam ali um lugar bem central. Nos outros
livros, ainda que talvez mais discretamente, a presença do mar e das ondas
também se efetua. Mas no livro novo ela adquire uma significação maior, mais
decisiva, com diversos poemas, chegando até à écfrase bem realizada de um quadro
de Edwad Hopper, Ground swell. O último poema do livro, não por acaso, é a
culminância dessa investigação, é o “fecho de ouro” do trabalho. E nele podemos
rever o aspecto que você inicialmente abordou. “O enigma das ondas” é abordado
pela formalização de cada estrofe pensada como uma onda, quando a forma
materializa a ideia. A sucessão dessas ondas desemboca, ao final, na constatação
maior, a última frase da última estrofe: “A língua que falam é a nossa”.
Resolvido o enigma? Claro que não, pelo contrário, a língua alcança a
consciência de sua ignorância de si e do mundo, repondo o mistério que somos nós
e a realidade. Isto é muito bom e ilumina, retroativamente, todas as dúvidas de
que o livro está repleto. E sem oferecer respostas, o que seria um “erro”, uma
pretensão inadmissível. Há ainda, Ronald, uma coisa que me chama a atenção na
poesia de Rodrigo, ou mais especificamente nesse livro, que é a presença de um
“espírito haikai ou epigramático”, não só nos pequenos poemas, mas também em
alguns dos maiores. Por vezes, dentro de um longo poema alguns dos versos se
individualizam para além da totalidade do poema e se anunciam como se estivessem
livres do entorno, realizando aquela “percepção momentânea autossuficiente”
exigida no haikai. Para essa operação não é necessário que se trabalhe no
formato clássico do haikai, mas dentro do seu espírito. Veja-se, por exemplo, o
caso de “Manhã em Olímpia”. Poderíamos enumerar vários outros casos, mas por
falta de espaço aqui deixemos que o leitor abra as suas “portas da percepção”
para esse fato. Jardel, queria ainda salientar um pequeno aglomerado de poemas,
entre os mais interessantes, que enfoca as co-ocorrências da história, da arte e
da natureza, de uma parte, e as possibilidades do eu, de outra. “Breve história
da solidão”, abordando milênios de nossas tentativas de fixar a memória da
experiência humana das mais diversas formas, conflui para a consciência de que
existimos precisamente pela assunção dessas frágeis tentativas de registrarmos
quem somos. O terror da temporalidade, assim, torna-se uma potência em aberto, a
depender do que faremos dela, com ela. Termino comentando um poema que me
agradou particularmente: “Paisagem”. Ele amarra diversos aspectos aqui
abordados: a natureza, a arte, o eu. Seu minimalismo oriental repõe com
plasticidade a “teoria das pinceladas incompletas”, quando realidade, sua
transfiguração pela arte e as tentativas de registro das experiências do eu
poético, tudo parece se desvanecer. As poucas palavras e o silêncios entre as
estrofes realizam inconicamente a típica sugestão de um nanquim chinês. Não
exatamente o “tudo névoa nada”, de Haroldo de Campos. Estamos um pouco antes
disto, há ainda uma imagem, mesmo que esbranquiçada. Ronald, essa “imagem
esbranquiçada” sobre a qual você se referiu talvez seja fruto da crença do poeta
de que a realidade só pode ser apresentada com perfis infinitos, que só apareçam
acidentalmente e que estão em mudança constante. Tais perfis estão sempre
devorados pela luz, a luz das destruições que hoje brilham mais que o sol sobre
as ondas.
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