quarta-feira, setembro 23, 2020

"Pandora", poema de "O enigma das ondas", de Rodrigo Garcia Lopes (lançamento editora Iluminuras)

Pandora

 

 



Pânico, pandemia, pandemônio:                

é o inimigo invisível, é o novo demônio,

é a face coberta por um pedaço de pano,

é o humano reaprendendo a ser humano.

É uma carreata de caixões pelas ruas de Turim,

é o translúcido azul do céu de Pequim.

É o papa rezando na São Pedro deserta,

são as águas transparentes dos canais de Veneza.

Parece que faz tanto tempo que tudo aconteceu,

presos no labirinto com Minotauro e Teseu.

Legiões de desempregados em Teerã, São Paulo, Paris.

As calçadas de Guayaquil estão cheias de cadáveres.

Estão pregando tapumes nas fachadas.

Todas as fronteiras foram fechadas.

Os médicos e coveiros estão exaustos.

Os jornais nem noticiam mais o holocausto.

São pilhas de corpos-números cobertos por um véu,

São poemas que jamais sairão do papel.


Os confinados batem panelas, invocam os magos,

pumas invadem as avenidas de Santiago.

É uma vida pulsando entre a pedra e a espada,

é o prenúncio de uma economia global robotizada.

São velórios e shoppings vazios, praias desertas,

é o começo de um renascimento, é o fim de uma era.

É o silêncio ensurdecedor e o medo de morrer,

é o tempo pra ler toda a obra de Shakespeare,

é a chance de ser o maior experimento

de controle social de todos os tempos.

É um exército branco higienizando as cidades,

é um planeta em quarentena por toda a eternidade.


É um homem que saiu do isolamento e nunca mais foi visto,

são fanáticos gritando O Vírus é o Anticristo.

São anjos em polvorosa sobre os céus de Berlim,

são amantes aprendendo a amar enfim.

Já ninguém ouve o que os agonizantes urram,

os metrôs voltaram hoje a circular em Wuhan.

É solidão compulsória, é um estado de sítio,

são coiotes vagando livres por San Francisco,

É uma flor desabrochando durante a tempestade

(pois quando tudo acabar talvez seja tarde).

É a solidão futurista da Times Square,

é o suicida alcançando um revólver.

São navios de cruzeiro proibidos de atracar,

são hospitais abarrotados em Milão, Rio, Dakar.

Pássaros continuam voando, geleiras caindo,  

há um pôr do sol distante, solitário e lindo.

É viver entre as paredes dos parênteses

em reticências que se alongam como meses.

É o mundo inteiro em stand-by,

é o corpo lutando por ar.

 


Rodrigo Garcia Lopes



O enigma das ondas
(152 págs., lançamento da Editora Iluminuras)

https://www.editorailuminuras.com.br/o-enigma-das-ondas

 

 

 

 

 

 

 

 

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