sábado, julho 02, 2011

Resenha de Marciano Lopes sobre POLIVOX


Uma resenha lúcida sobre meu primeiro disco, Polivox, que está completando exatos 10 anos. Escrita pelo poeta, professor e crítico Marciano Lopes.
Música & Poesia de Rodrigo Garcia Lopes 

      Este Outras Palavras é dedicado ao Cd Polivox, de Rodrigo Garcia Lopes, que foge à média da produção fonográfica devido à valorização da palavra poética e à busca de novas relações desta com a música. Conforme as palavras do próprio Rodrigo, que lemos na apresentação existente no encarte, os poemas recebem três tratamentos básicos: 1)      são musicados e transformados em canções; 2)      são tratados sob a forma de poetrilhas ou salas sonoras (aguçando uma relação cinemática com o texto); ou 3)     são lidos no “seco”, explorando o som da linguagem em si.
       Assim como em seus livros – especialmente Solarium – há no Cd pelo menos duas faces, duas vertentes poéticas: uma apolínea, zen, racional e contida; outra dionisíaca, contracultura, beatnik. Este hibridismo polifônico (daí o nome do Cd: poli = vários; vox = voz) também está presente na música, que dialoga com os mais diversos gêneros e ritmos, tais como a canção, o rock, o soul, o pop, o reggae, o blues, o jazz e o funk. Mas toda essa variação não constitui uma salada sem sentido, porque ela é feita de forma extremamente consciente, de modo que cada poema receba o tratamento musical mais adequado ao seu conteúdo. E este casamento entre forma e conteúdo, que é uma coisa rara não só na literatura como também na música, é uma das grandes virtudes do Cd. Clique, plugue ligue é um soul moderno com teclados e elementos do rap. Perfeitos estranhos é um blues que fala do vazio da separação. Mulher da multidão, poema do primeiro livro, que dialoga com o famoso soneto À uma passante, de Baudelaire, apresenta um arranjo que inclui o sample de sons urbanos (como sirenes e múltiplas vozes) acompanhados principalmente pelo baixo e pela bateria, o que resulta em um som bastante tenso. E falando em tensão e hibridismo, é muito interessante o resultado do que Rodrigo chama de um jazz-beat-surrealismo existente no arranjo do poema Solidão, que nos lembra Rimbaud a caminhar com uma folha de alface na lapela.
        A musicalidade é uma marca da sua poesia, que por mais imagética que seja nunca deixa de lado a melopéia. Aliás, este é outro aspecto de extremo valor em seu trabalho literário, pois grande parte da poesia moderna recusa não somente a discursividade (o que não é ruim, pois constitui uma reação à verborragia da nossa sociedade de consumo) como também o ritmo e a musicalidade, o que a torna, às vezes, extremamente chata, afastando-a do gosto popular. Felizmente isto não acontece nos textos poéticos de Rodrigo, mesmo quando se inscrevem na tradição zen e são lidos a “seco”, sem nenhum tratamento musical, de modo a valorizar a força poético-musical-imagética da palavra. E este é o caso de Cerejas (abaixo), poema que é pura poesia, só voz e silêncio. Aliás, o silêncio neste poema é algo muito importante, pois valoriza a palavra e a imagem, de acordo com a poética zen do qual ele é caudatário:

        
  cerejas
          podem
          parecer
          amargas
          se você nada sabe
          do solitário sabor

          experimente-as
          antes

          quando
          ainda

          forem
          flores 

       Cerejas é um poema que é estruturado em conformidade com a estética do haicai (embora cada estrofe seja formada por dois versos e não três), em que a síntese, o silêncio, a temática da natureza e a valorização da imagem em detrimento da lógica discursiva são fundamentais para o caminho da reflexão rumo à ascese e à luz. Observem a forte relação entre as delicadas imagens da natureza existentes no poema e as pinturas japonesas de pássaros e flores, às quais primam pela luminosidade resultante da simplicidade e limpeza das formas. E essa beleza, que devemos à cultura japonesa, também se encontra em El duende e Sobre um ditado antigo, duas outras maravilhosas faixas do Cd. Observem, no final do segundo poema, a sutil beleza resultante da substituição da palavra "alarde", clara e sonora devido à vogal [a], aberta, pela palavra "escândalo", sombria e silenciosa devido ao [a] nasalisado, que  não somente gera a surpresa do efeito final como também o silêncio coerente com a postura zen:

O dia lapida
o lado mais raro
da dor.
A mulher transpira
pelos poros iridescentes
dos dias.
Há dias
em que um homem
tem o tamanho de uma flor.
 
(el duende)


Vou dizer de novo o que disseram
para que a mente nunca esqueça
que um dia, folhas, nossos lábios se fizeram
relva, céu veloz, veludo e névoa espessa.

Essa fumaça no vazio é parecida
com a outra que, vida,
dura como dura o raio, quartzo
que uma pupila dilata e irradia.

Quem diria, por exemplo,
que sob a carne do incenso,
no durante da tarde,
o sândalo respira
sem fazer nenhum escândalo.
 
 (sobre um ditado antigo)
        O orientalismo presente no Cd, assim como em sua obra poética, revela a afinidade do poeta com a tradição da arte romântica, que buscou nas culturas orientais uma alternativa ao pragmatismo, à racionalidade e à barbárie da civilização moderna ocidental. Sua presença como contra-ideologia aos valores dominantes da nossa sociedade está nos elementos do zen-budismo e pode ser vista, de modo mais explícito, na faixa Thoth, em que Rodrigo constrói uma alegoria das ruínas da modernidade erigida sob o signo do terror. Num transe, o eu-lírico do poema incorpora a voz de Thoth, Deus dos Mortos e da Palavra que, segundo a mitologia egípcia, não só foi o responsável pela transmissão do alto conhecimento da civilização que morria para a nova, que nascia, como também era aquele que julgava os mortos. E seu julgamento sobre nossa civilização é claro e impiedoso. Indignado, pergunta: “Como aquilo virou isso?” e, depois, bate o martelo: “Eles, modernos, que mordam a carne bizarra e abocanhem sua módica ração, seu Estúdio Realidade”. Ao poeta, louco e amaldiçoado clown, assim como foi Cruz e Souza, de quem ouvimos o poema Assinalado (único que não é de Rodrigo), cabe a audácia dos nervos para o registro da beleza eterna, humana resposta aos tempos de terror.
                                                              Marciano Lopes

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