Poeta narra encontro com William Burroughs
A entrevista de duas horas de Rodrigo Garcia Lopes com o escritor
31 de janeiro de 2014 | 19h 30
Rodrigo Garcia Lopes - Especial para Estado
Começo dos anos 90. Eu fazia mestrado na Arizona State University e descobri que a instituição tinha adquirido uma coleção especial de William Burroughs. Foi então que decidi focar minha dissertação em sua obra. Em minha escrita, os cut-ups (técnica de colagem textual) não foram tão importantes quanto sua percepção e visão, embora tenha feito alguns poemas (C:polivox.doc) e experimentos poéticos com eles. “Assaltem o Estúdio Realidade e retomem o universo” é uma frase que aparece em Nova Express (1964) e inspirou o título de meu livro de poemas Estúdio Realidade e do CD Canções do Estúdio Realidade (ambos de 2013). A expressão “estúdio realidade”, como eu a leio, traz embutida a ideia da realidade, em nossa Idade Mídia, como algo cada vez mais fabricado e manipulado, sobretudo pelos meios de comunicação de massa e pela internet. Ao mesmo tempo, serve de metáfora para o mundo atual. Os escritores, segundo Burroughs, teriam o poder de desescrever o filme da realidade, de criticar e desconstruir suas estruturas.
Em março de 1991 contatei James Grauerholz, agente literário e amigo de Burroughs, e no dia 13 de maio fui para Lawrence, Kansas, em uma região de frequentes tornados. Apesar de ter me preparado para o encontro, estava ansioso. O “cosmonauta do espaço interior” e membro fundador da geração beat morava em uma casa com árvores frondosas. No número 1927 da Learnard Avenue ele escrevera suas últimas obras, como a trilogia composta por Cities of the Red Night, The Place of Dead Roads, The Western Land, além de My Education: a Book of Dreams, diário de sonhos publicado em 96. Quando eu e James chegamos, Burroughs já nos esperava na pequena varanda. Trajava camisa marrom, calça jeans e um elegante chapéu fedora.
Foi uma entrevista longa, de mais de duas horas. Ele estava vivendo uma vida bem tranquila, diferente do fim dos anos 70, em Nova York, quando a heroína o fisgara novamente. Fazia tratamento de manutenção com metadona. Escrevia todos os dias. Os convites para leituras, exposições de arte, gravações e participações em filmes e discos haviam aumentado. David Cronenberg havia acabado de filmar seu livro mais conhecido, Almoço Nu (no Brasil, Mistérios e Paixões), e ele estava animado com o resultado.
Embora a saúde não fosse mais a mesma (havia sofrido uma cirurgia cardíaca uns meses antes), estava mais lúcido do que nunca ao falar de seus temas favoritos, como o vício como metáfora e a palavra como vírus. “Desde o começo eu tenho estado mais preocupado, enquanto escritor, com o vício em si mesmo (seja a drogas, sexo, dinheiro, poder) como um modelo de controle, e com a decadência suprema dos potenciais biológicos da humanidade, pervertidos pela estupidez e pela malícia desumanas.” Sobre o futuro da literatura, disse, entre goles de Coca-Cola (com vodca, como fui descobrir quase no fim da entrevista): “Não acredito que outras tecnologias e artes serão capazes de substituir a literatura. As pessoas vão continuar lendo. Há coisas que você não consegue numa tela ou num filme. Com um livro as pessoas podem sentar-se em qualquer lugar e é como se um filme estivesse passando em suas cabeças”. Sua voz era metálica, monocórdia, arrastada. As palavras eram pontuadas com um leve repuxar de canto de boca. Por toda parte, gatos, uma de suas paixões e tema de O Gato por Dentro (1986). Remetendo aos egípcios, via gatos como companheiros psíquicos, familiares.
Burroughs situou sua obra dentro da antiga tradição picaresca, de Petrônio, Cervantes, Rabelais. Escrevia em vários estilos, que iam da ficção científica ao romance policial (na tradição hard-boiled de Raymond Chandler e Dashiel Hammet), do western ao diário de viagem. Satirista genial, visionário, Burroughs foi um dos escritores do século 20 que mais levou adiante o “desregramento gradual e racional de todos os sentidos” proposto por Rimbaud. Depois da trilogia cut-up, composta por Soft Machine, The Ticket that Exploded e Nova Express, onde desconstruía o romance tradicional, nos anos 80 e 90, Burroughs voltou a uma forma narrativa mais linear, sem nunca abandonar seu projeto literário e político de questionar as estruturas da realidade. “Talvez o conceito mais básico da minha escrita seja o credo num universo mágico, num universo de muitos deuses, frequentemente em conflito.”
Burroughs foi educado, bem-humorado, paciente e atencioso, desmontando a imagem que eu fazia dele. No fim, tiramos algumas fotos e ele ainda me presenteou com uma de suas pinturas. Comentou que acabara de voltar de uma visita à casa de Whitley Strieber, autor de Comunhão: Uma História Real, e estava fascinado com o tema da abdução alienígena. No entanto, ficara desapontado por não ter tido nenhum contato com eles. Eu já não poderia dizer a mesma coisa.
RODRIGO GARCIA LOPES É POETA, COMPOSITOR,JORNALISTA, AUTOR DE ESTÚDIO REALIDADE (7 LETRAS)
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