O mistério de
Burroughs
RODRIGO GARCIA LOPES
ESPECIAL PARA A FOLHA
Lawrence, Kansas, 1991
Eu colhia entrevistas para meu livro "Vozes e Visões"(Iluminuras, 1996).
Estava morando no Arizona, fazendo mestrado sobre William Burroughs (1914-97).
Cheguei a Lawrence, Estado do Kansas, no Meio-Oeste americano, onde o
legendário escritor morava desde 1981. James Grauerholz, seu amigo e agente
literário, foi me pegar na estação de trem. Senti um frio na barriga. Afinal,
iria entrevistar o profeta da contracultura, o genial fora da lei da
literatura, que fez a cabeça de Jack Kerouac e Allen Ginsberg e detonou uma
revolução nas letras americanas.
James percebeu minha ansiedade e disse que tudo
daria certo. Quando chegamos, Burroughs já nos esperava na varanda de sua casa.
Magérrimo, usando um elegante chapéu Fedora, nos acenou com sua bengala e
sorriu.
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James Grauerholz/Arquivo Pessoal
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O escritor e compositor brasileiro Rodrigo Garcia Lopes com William
Burroughs, em 1991, no Arizona
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Extremamente educado, bem-humorado, paciente e
atencioso, em poucos minutos ele desmontou a imagem que eu fazia dele. Relaxei.
Comentou que acabara de voltar do Canadá, onde fora acompanhar as filmagens de
"Mistérios e Paixões" (baseado em "Almoço Nu", seu livro
mais conhecido), dirigido por David Cronenberg.
Impossível ficar indiferente à voz de Burroughs:
metálica, arrastada e que ainda carregava o sotaque sulista de Saint Louis. De
olhos azuis, o neto do inventor da máquina de calcular tinha um tique nervoso:
repuxava um canto da boca enquanto falava. Ainda escrevia todos os dias. Disse
que a casa estava sempre cheia de amigos e que saía cada vez menos, a não ser
para dar alguma palestra ou para praticar tiro e pintar na propriedade de um
amigo (as famosas "pinturas a tiro" que ele inventou).
Sentamos na sala. Liguei o gravador. Começamos pela
literatura. Falou de seus escritores favoritos (Conrad, Eliot, Proust,
Rimbaud). Discutimos "o fim do romance", as vanguardas do começo do
século 20 e os "cut-ups", técnica de "recortagem textual"
que ele usou, sobretudo nos anos 60, para desconstruir o romance tradicional.
"Hoje nós já vemos em 'cut-up'! A vida é um 'cut-up'. Toda vez que você
olha pela janela ou caminha pela rua, sua consciência esta sendo editada por
fatores do acaso."
Durante a entrevista, que durou cerca de duas
horas, ele fumou um cigarro atrás do outro (Player's Navy Cut, sem filtro).
Levantava-se a cada 15 minutos, ia até um balcão que havia na cozinha. Erguia
uma garrafa de dois litros de Coca-Cola, se servia e voltava. "Burroughs
bebendo Coca-Cola?", pensei.
Com seu raciocínio rápido e certeiro ele ia falando
sobre os temas que eu colocava: linguagem, manipulação da mídia,
conservadorismo, Aids ("uma invenção de laboratório"). Falou sobre o
valor do acaso na criação artística, drogas, sonhos. Ao falarmos sobre as
diferenças entre prosa e poesia, disse algo que se encaixa à perfeição na
poesia brasileira atual. "Eu costumo dizer que a maioria dos poetas é
essencialmente de prosadores preguiçosos". Pergunto sobre extraterrestres.
"É bem possível que existam alienígenas vivendo entre nós. Tenho um amigo
que tem contato com essas gangues".
Uma coisa me intrigava: durante a entrevista, em
vez de ficar cansado, Burroughs ia estava cada vez mais animado e falante.
Quando ele foi a seu escritório pegar algumas pinturas para me mostrar,
aproveitei e fui até a cozinha. Embaixo do balcão, ao lado da Coca-Cola, havia
uma garrafa de vodca quase vazia. Mistério explicado.
Burroughs voltou com várias de suas pinturas
abstratas e me presenteou com uma delas. Colocou-as sobre uma cadeira, acendeu
um e me perguntou sobre o que eu conseguia ver. Então fizemos algumas
fotos. Uma delas, em parceria. Fomos até o quintal, onde ele me mostrou com
orgulho sua horta de tomates. Havia vários gatos (uma de suas paixões). Quando
fui embora, eu ainda me beliscava. A sensação era a de que acabara de
entrevistar um extraterrestre. E talvez tenha mesmo.