domingo, dezembro 16, 2012

NA 'ILUSTRÍSSIMA" DE HOJE


O mistério de Burroughs
RODRIGO GARCIA LOPES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Lawrence, Kansas, 1991

      Eu colhia entrevistas para meu livro "Vozes e Visões"(Iluminuras, 1996). Estava morando no Arizona, fazendo mestrado sobre William Burroughs (1914-97). Cheguei a Lawrence, Estado do Kansas, no Meio-Oeste americano, onde o legendário escritor morava desde 1981. James Grauerholz, seu amigo e agente literário, foi me pegar na estação de trem. Senti um frio na barriga. Afinal, iria entrevistar o profeta da contracultura, o genial fora da lei da literatura, que fez a cabeça de Jack Kerouac e Allen Ginsberg e detonou uma revolução nas letras americanas.
        James percebeu minha ansiedade e disse que tudo daria certo. Quando chegamos, Burroughs já nos esperava na varanda de sua casa. Magérrimo, usando um elegante chapéu Fedora, nos acenou com sua bengala e sorriu.

James Grauerholz/Arquivo Pessoal
O escritor e compositor brasileiro Rodrigo Garcia Lopes com William Burroughs, em 1991, no Arizona
      Extremamente educado, bem-humorado, paciente e atencioso, em poucos minutos ele desmontou a imagem que eu fazia dele. Relaxei. Comentou que acabara de voltar do Canadá, onde fora acompanhar as filmagens de "Mistérios e Paixões" (baseado em "Almoço Nu", seu livro mais conhecido), dirigido por David Cronenberg.
     Impossível ficar indiferente à voz de Burroughs: metálica, arrastada e que ainda carregava o sotaque sulista de Saint Louis. De olhos azuis, o neto do inventor da máquina de calcular tinha um tique nervoso: repuxava um canto da boca enquanto falava. Ainda escrevia todos os dias. Disse que a casa estava sempre cheia de amigos e que saía cada vez menos, a não ser para dar alguma palestra ou para praticar tiro e pintar na propriedade de um amigo (as famosas "pinturas a tiro" que ele inventou).
     Sentamos na sala. Liguei o gravador. Começamos pela literatura. Falou de seus escritores favoritos (Conrad, Eliot, Proust, Rimbaud). Discutimos "o fim do romance", as vanguardas do começo do século 20 e os "cut-ups", técnica de "recortagem textual" que ele usou, sobretudo nos anos 60, para desconstruir o romance tradicional. "Hoje nós já vemos em 'cut-up'! A vida é um 'cut-up'. Toda vez que você olha pela janela ou caminha pela rua, sua consciência esta sendo editada por fatores do acaso."
     Durante a entrevista, que durou cerca de duas horas, ele fumou um cigarro atrás do outro (Player's Navy Cut, sem filtro). Levantava-se a cada 15 minutos, ia até um balcão que havia na cozinha. Erguia uma garrafa de dois litros de Coca-Cola, se servia e voltava. "Burroughs bebendo Coca-Cola?", pensei.
       Com seu raciocínio rápido e certeiro ele ia falando sobre os temas que eu colocava: linguagem, manipulação da mídia, conservadorismo, Aids ("uma invenção de laboratório"). Falou sobre o valor do acaso na criação artística, drogas, sonhos. Ao falarmos sobre as diferenças entre prosa e poesia, disse algo que se encaixa à perfeição na poesia brasileira atual. "Eu costumo dizer que a maioria dos poetas é essencialmente de prosadores preguiçosos". Pergunto sobre extraterrestres. "É bem possível que existam alienígenas vivendo entre nós. Tenho um amigo que tem contato com essas gangues". 
     Uma coisa me intrigava: durante a entrevista, em vez de ficar cansado, Burroughs ia estava cada vez mais animado e falante. Quando ele foi a seu escritório pegar algumas pinturas para me mostrar, aproveitei e fui até a cozinha. Embaixo do balcão, ao lado da Coca-Cola, havia uma garrafa de vodca quase vazia. Mistério explicado.
     Burroughs voltou com várias de suas pinturas abstratas e me presenteou com uma delas. Colocou-as sobre uma cadeira, acendeu um e me perguntou sobre o que eu conseguia ver. Então fizemos algumas fotos. Uma delas, em parceria. Fomos até o quintal, onde ele me mostrou com orgulho sua horta de tomates. Havia vários gatos (uma de suas paixões). Quando fui embora, eu ainda me beliscava. A sensação era a de que acabara de entrevistar um extraterrestre. E talvez tenha mesmo.

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