O rigor modernista de Laura Riding não deve ser esquecido
Reler é um dos verbos mais agradáveis da face da terra. Limpando a poeira das estantes, de repente, dou de cara com um livro que me deixou muito impressionado no momento de sua primeira leitura, há, creio, cinco anos.
O reencontro com os versos vitais da norte-americana Laura Riding (1901-1991), um dos principais nomes da poesia modernista em seu país, foi para lá de fortuito.
A tradução de "Mindscapes", assinada pelo poeta e ensaísta paranaense Rodrigo Garcia Lopes ("Solarium", "Polivox", "Nômada"), que já verteu à língua portuguesa Rimbaud e Sylvia Plath, foi publicada pela editora Iluminuras, de São Paulo (SP), e ainda pode ser encontrada em pontas de estoques de livrarias e sebos, um senhor negócio.
Laura Riding é autora de dicção única, quase inimitável. Para ela, a poesia tem uma importância muito além do próprio processo de criação e construção literária. É, na verdade, a forma máxima de conhecimento do mundo, uma disciplina, assim como a História e a Filosofia. Dona de uma radicalidade de pensamento, de atitudes ácidas, ela conviveu com nomes como Virginia Woolf, T.S. Eliot, William Carlos Williams, Ezra Pound, William Butler Yeats, W. H. Auden e Gertrude Stein, embora mantivesse uma postura de independência crítica que resvalava, sem dó, em uma ética e estética próprias, capazes de desafiar até mesmo o próprio exercício poético.
Em 1939, no auge de sua polêmica carreira como poeta, pesquisadora da linguagem e ensaísta, ela abandonou a poesia. Parecia prever o que o filósofo Theodor W. Adorno comentaria a respeito da gestação literária após o término da Segunda Guerra Mundial e a descoberta para o mundo dos horrores dos campos de concentração nazista e a perseguição aos judeus. "É impossível escrever poesia depois de Auschwitz", disse Adorno.
Por premonição e com antecedência, Laura levou a sério a definição do apocalíptico Adorno. Só voltaria a escrever poemas nos anos 19660, mudando inclusive seu sobrenome para Jackson. Nessas mais de três décadas de silêncio, a autora acompanhou seu companheiro na produção de laranjas em uma fazenda no interior dos Estados Unidos. Embora abraçasse a agricultura e a criação cítrica, não deixou de lado a pesquisa com a linguagem, embora seus cada vez mais raros poemas só ganhassem circulação a partir dos anos 1970.
Embora tenha tido seu nome praticamente eliminado do cânone poético norte-americano da primeira metade do século XX e seus versos estivessem presentes em apenas raras coletâneas, Laura Riding fez a cabeça de gerações de poetas e ficcionistas, entre eles John Ashbery (autor de "Auro-Retrato Num Espelho Convexo"), Kathy Acker e Paul Auster, que a cita como uma de suas principais influências no belo e seminal ensaio "A Arte da Fome" (publicado no Brasil pela editora José Olympio).
Sua poesia fortemente comprometida com o grau de depuração da linguagem deságua também nas propostas vanguardistas da "language poetry" norte-americana a partir de nomes como Charles Bernstein, Michael Palmer e Jerome Rothenberg. A tradução de Rodrigo Garcia Lopes é a primeira em língua não-inglesa. . Reflexiva, iconoclasta, auto-referente, Laura Riding apostava em seus "mindscapes" (título desta coletânea), cuja melhor tradução aproximativa à língua portuguesa seria "pensagens", espaços verbais transpostos à escrita onde há um constante flerte entre razão e emoção, cálculo e desejo, rigor e respiro, cavalgada de paradoxos sutilmente explorada pela autora. Em um dos poemas, “O Mapa dos Lugares”, a norte-americana assume uma geografia de risco. Confira, a seguir.
O MAPA DOS LUGARES
O mapa dos lugares passa
A realidade do papel se rasga
Onde terra e água estão
Estão apenas aonde já estavam
Quando palavras se liam aqui e aqui
Antes de navios acontecerem ali.
Agora de pé sobre nomes nus,
Sem geografias na mão,
E o papel é lido como antigamente,
os navios no mar
Dão voltas e voltas
Tudo sabido, tudo encontrado
A morte cruza consigo por toda parte
Buracos nos mapas dão em lugar algum.
LAURA RIDING
(Tradução de Rodrigo Garcia Lopes)
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