Há um mês a jornalista Deborah Paula Souza, que eu conheci na época em que trabalhava (ela, não eu), na Marie Claire, me achou e pediu uma crônica para a revista Cláudia. Eu topei. Interrompi o romance que estou escrevendo e mandei ver num texto de 1.000 caracteres sem espaço. Um dia depois escrevi dizendo que já tava rascunhando algo, e perguntei se eu poderia escrever sobre uma paisagem. Ela disse: "Bonito isso, Rodrigo. Eu também sou apaixonada pelas minhas plantinhas e pela jaboticabeira no quintal, mas não é isso que estou pedindo. É pro público feminino". Dias depois mandei o texto integral, e saiu uma edição menor da Cláudia deste mês, especial dia dos namorados na capa.
COMO ME SINTO QUANDO ME APAIXONO
Rodrigo Garcia Lopes
De cara, me vem a frase de Rimbaud: na paixão, "eu é um outro". Ou penso no que costuma dizer um amigo: o fim da paixão coincide com a descoberta de que "um é pouco, dois é muito". A paixão, antes, era uma promessa de felicidade. Hoje, desconfio que antes eu não me sentia: as coisas é que começavam a sentir, a sofrerem em mim. A memória de um rosto ou de uma voz é o que me deixava sentindo, sentindo. Sobretudo a memória de uma presença, ou aquilo que os antigos chamavam de musa. Pois só uma musa é capaz de despertar essa música em nós, essa irmã da paixão chamada poesia, e que nos leva a escrever coisas "sem sentido" como: "Imprimo em seus lábios lírios & jasmins / primícias de cetim em toques de neve / mixo a ti e a mim nesses senfins / gravo na boca o cheiro bom do cravo. / Nenhuma nóia a nos tocar se atreve. // Ligado, digito os terminais dos teus sentidos / Regulo o foco do deleite, chupo teus bits & bytes, / Quando a aurora goza um sono rosa, Danaê, acredite: / com sentidos assim, quem precisa de inimigos? [...]. Sim, a paixão é uma mulher de olhos invisíveis.
Dizer que a paixão implica em perda da razão não parece correto. Talvez seja mais apropriado dizer que a paixão carrega uma outra razão. A paixão, para mim, é como a leitura de um poema. Ou nos arrebata ou não é poesia. Nem paixão. A paixão é como uma palavra, num poema, uma palavra que busca uma rima. Quando duas palavras se beijam, nasce a poesia. Para mim, a paixão tem a ver com aquela "realidade ficcional" na qual estamos imersos quando lemos um romance: uma suspensão temporária do descrédito do mundo e do outro. Mas, antes que acabe, "posto que é chama", pintam os sintomas: insônia (pensa-se naquela pessoa), suores e tremores nas mãos (pensa-se naquela pessoa), enfim, dispara-se um mecanismo mental obsessivo (pensa-se naquela pessoa). A paixão é patética (palavra-irmã de paixão). Pateta é a pessoa apaixonada. Um marmanjo passa a se comportar como um adolescente. Não há como escapar.
A paixão, como a poesia, não tem muito sentido num mundo regido cada vez mais por valores como Mercado e Sucesso. Pois a paixão não é um valor: ela é um bem, um talento, uma espécie de reserva ecológica da sensibilidade. Em nossos dias, a paixão virou artigo de luxo. A arte de padecer por um amor está se tornando tão exótica quanto a poesia, uma arte mais e mais restrita a iniciados, como o foram a falconaria, a numismática, a filatelia. Pois para o que serve esse negócio que nos acossa, nos deixa em estado de transe, de sítio, de alerta, de poesia? Nesses nossos dias velozes e superficiais, ninguém parece ter mais tempo para o tempo que a paixão exige. O mundo deveria se adaptar à paixão, e não o contrário.
Apesar de já termos visto e vivido o filme da paixão, o fascínio que o outro pode exercer em nós nos faz cair, como patos, nessa lagoa que os gregos chamavam de... pathós: sofrimento. Parece que se a paixão não carrega este componente de dor, não é paixão. Lembro, em cenas que hoje fazem parte definitiva de minhas amnésias afetivas, que a ausência da pessoa pela qual estava apaixonado provocava em mim os mais estranhos pensamentos. Hoje penso que essa projeção é a de nossa própria imagem. Como tentar agarrar o próprio reflexo num espelho, como no mito de Narciso. E tem outro problema: a paixão sonha eliminar a solidão, o que é uma impossibilidade. E é bom mesmo que "seja eterno enquanto dure": nossas expectativas em relação à pessoa-objeto de nossa paixão são quase sempre inatingíveis. Pois mesmo que apaixonar-se seja uma forma de "dor elegante", como diria Leminski, implica uma situação de estresse emocional e afetivo que nenhum ser humano pode suportar por longos períodos, sob pena de enlouquecer, e aí não seria mais paixão. Pois a paixão é um pensamento são num mundo insano. Quanto dura o filme da paixão? As personagens mudam, a paixão, não. Para mim, a paixão é como um daqueles paraísos perdidos: Mu, Atlântida, Agartha, Shambala, praia de Dido. Vê, já estou apaixonado e falando coisas sem sentido.
Rodrigo Garcia Lopes é escritor, poeta, jornalista, tradutor (Sylvia Plath, Rimbaud, Whitman, Laura Riding) e compositor, autor do CD de música e poesia Polivox, e dos livros de poemas Solarium, Visibilia, Polivox, Nômada. É um dos editores da revista Coyote e autor do blog www.estudiorealidade.blogspot.
9 comentários:
Rodrigo, fantástico seu texto... muita lucidez sobre a loucura que é o estar apaixonado =)
Felizmente não há cura.
olá Rodrigo,
sua crônica me fez lembrar de um aforismo de Léon Bourgeois: “As paixões humanas, como as formas da natureza, são eternas.”
eu não leio a revista Cláudia. que bom que editou o texto aqui. gostei muito!
conheço algumas de suas traduções, mas não os seus poemas.
vou procurar por eles aqui em bh.
um abraço
oi Rodrigo, simplesmente me apaixonei pelo texto... parabens!!!
Oii Rodrigoo .. li sua crônicaa na revistaa e achei muito interessantee .. vc está de parabéns .. beijos!
Rodrigo, adorei teu texto. ötimo. bjs
Amei o texto. To apaixonada!!!
"Se o amor é uma busca, se o estudo é uma busca, a arte uma busca, a vida inteira é também busca. E o amor e a paixão são a mola dessa busca." Lou Salomé
Muito legal,Rodrigo. Vou postar no Zoe Tarot para fazer minhas consulentes se apaixonarem por você.
:)
Cara, esse pegou na veia, como de costume!!
Belezura!!
Abrç,
Ribeva
Postar um comentário