sexta-feira, julho 11, 2008

MINHA VIDA NOS TUBOS DA SOBREVIVÊNCIA (poema de Roberto Bolaño em Coyote 17)


MINHA VIDA NOS TUBOS DA SOBREVIVÊNCIA


Como eu era pigmeu e amarelo e de feições agradáveis

E como eu era esperto e não estava a fim de ser torturado

Num campo de trabalho ou numa cela acolchoada

Me meteram no interior deste disco voador

E me disseram pra voar e encontrar o meu destino. Mas que

Destino iria eu encontrar? A maldita nave parecia

O holandês errante pelos céus do mundo, como se

Quisesse fugir de minha incompetência, de meu esqueleto

Singular: um cuspe na cara da Religião,

Uma facada de seda nas costas da Felicidade,

Apoio Moral e Ético, a fuga diante

De meus irmãos verdugos e meus irmãos desconhecidos.

Todos enfim humanos e curiosos, todos órfãos e

Jogadores cegos à beira do abismo. Mas tudo isso

Dentro do disco voador não podia me deixar indiferente.

Nem remoto. Ou secundário. A maior virtude de minha espécie traidora

É a coragem, talvez a única coisa que é real, palpável até nas lágrimas

E adeuses. E coragem era o que eu pedia fechado

No disco, assombrando lavradores e bêbados

jogados nos fossos. Invoquei com a coragem na maldita nave

Enquanto trilhava por guetos e parques que para um transeunte

Deviam parecer enormes, mas que para mim eram só tatuagens sem sentido,

Palavras magnéticas e indecifráveis, apenas um gesto

Insinuado debaixo do manto de nutrias do planeta.

Será que havia me convertido em Stefan Zweig e visto a aproximação

Do meu suicídio? Com respeito a isso a frieza da nave

Era incontrovertível, e às vezes sonhava

Com um país quente, um terraço e um amor fiel e desesperado.

As lágrimas que logo derramava permaneciam na superfície

Do disco durante dias, testemunho de minha dor, mas

De um tipo de poesia exaltada que cada vez mais a

Apertava meu peito, minhas têmporas e cintura. Um terraço,

Um país quente e um amor de grandes olhos fiéis

Se aproximando lentamente através do sonho, enquanto a nave

Deixava estrelas de fogo na ignorância de meus irmãos

E em sua inocência. E éramos uma bola de luz, o disco e eu,

Nas retinas dos pobres camponeses, uma imagem perecível

Que nunca descreveria adequadamente meu desejo

Ou o mistério que era o princípio e o fim

Daquele artefato incompreensível. Foi assim até o

Fim dos meus dias, submetido aos ventos arbitrários,

Sonhando às vezes que o disco se estatelava numa serra

Da América e meu cadáver quase sem um aranhão surgia

Para ser visto por velhos montanheses e historiadores:

Un ovo num ninho de ferros retorcidos. Sonhando

Que o disco e eu havíamos concluído nossa dança ridícula,

Ou nossa pobre crítica da Realidade, numa colisão indolor

E anônima em algum deserto do planeta. Morte

Que não me trouze paz nenhuma, pois depois que minha carne apodrecera

Eu continuava sonhando.


ROBERTO BOLAÑO
TRADUÇÃO: RODRIGO GARCIA LOPES



Um comentário:

anjobaldio disse...

Olá Rodrigo. Sempre venho aqui no teu blog.
Estou lendo agora Os Detetives Selvagens. O cara é genial mesmo. Grande abraço.