sábado, maio 03, 2008

Sobre poesia (no site Cronópios)

POLIVOX



You are the music while the music lasts (T.S. Eliot, em “Four Quartets”)




Desde que começou a ser posta no ar ou sobre uma superfície, a palavra poética foi sobretudo respiração e representação ("palavras são símbolos"). Dos ritos/mitos/ritmos ancestrais à poesia concreta e depois, essa especificidade "verbivocovisual" (termo de Joyce) tem sido intrínseca à poesia. Poesia: arte da linguagem. Palavra carregada de significado, imaginação, estranheza, beleza. Por outro lado, dos rapsodos gregos aos repentistas e rappers, a linguagem da música e a música da linguagem têm uma longa tradição de aproximações e distanciamentos, de múltiplas inseminações, sendo tão ancestral quanto sua prática. Como lembra Jerome Rothenberg, ao se referir às manifestações orais, “primitivo significa complexo”. Pound dizia que a poesia perde quando se afasta demais da música e das artes visuais, especialmente. Hoje, as possibilidades da poesia “eletrônica”, hipertextual, apoiada pelo aparato digital e do computador, só acentuaram essa qualidade performática inerente a ela (um poema pode ser, simultaneamente, lido, ouvido e visualizado), abrindo outras formas de recepção e interação. Acredito que experiências multimídia são caminhos instigantes que se abrem para a poesia hoje (penso também na poesia na rede, ou em arquivos fantásticos como o site Ubuweb, de Kenneth Goldsmith). Embora, claro, a técnica usada ou tecnologia não garanta um bom poema: um poema holográfico ou computadorizado pode usar os recursos mais avançados e não dizer coisa nenhuma. Não se não houver uma contraparte em termos de tecnologia do coração e da imaginação. Afinal, se poesia é a arte da palavra — carne de pensamento — ela tem que dizer alguma coisa, sob o risco de virar mero fetiche ou maneirismo. Contra-discurso num mar de discursos, em plena Idade Mídia, esse é maior desafio da poesia hoje.


Para o poeta, som, ritmo, nunca são meros acompanhamentos ou efeito sespeciais ou ainda meras roupagens — e sim a própria cartilagem de toda a operação poética. Sua base de operações. Concordo com a crítica Marjorie Perloff quando ela diz que muitos poemas hoje parece mais e mais prosa cortada em linhas, “prosa preguiçosa”, sem nenhum cuidado seja com o enjambement, ou mesmo com o ritmo da frase. Ela continua: “Por isso minha principal crítica hoje é em relação a falta de interesse no aspecto sonoro e visual da maior parte da poesia que aparece sobre minha mesa. É como se o som não existisse e que ‘verso livre’ é apenas prosa preguiçosa”.


A performance de poesia — por mais que detratores queiram ler estas manifestaçãoes como resíduo “pop” — possibilita um grau de intimidade (com cada um e com o público), um contato direto com a dimensão da linguagem em si, cada vez mais rara em tempos virtuais, superficiais e materialistas, em que as palavras são usadas como moeda de troca. O poema, aqui, é como uma partitura. Pois é a materialidade da palavra (som&sentido) em si que o poeta, ao falar seu poema, coloca em primeiro plano. A leitura ao vivo coloca a "concretude" da palavra, viva, na sua frente, com suas caraterísticas acústicas, sua lógica ou i-lógica próprias, seu acontecer. Há também um aspecto de guerrilha: a criação de novos públicos e de leitores em potencial, quebrando a idéia do recital monocórdio ou afetado dos “saraus”. Acho importante poetas lerem textos de outros poetas, que saiam de suas torres de marfim, por isso sempre procurei fazer nas apresentações “traduções” de textos alheios, de diversos períodos e estilos, justamente para mostrar a diversidade e possibilidades da poesia humana: de textos ancestrais como "O Navegante" a Jim Morrison, de Cruz e Sousa a Allen Ginsberg, por exemplo.


Importante dizer que, ao ser falado (ou cantado) o poema está aberto para todas as possibilidades em uma performance ao vivo: entonação, ambiente, qualidades rítimicas e prosódicas, timbre, apresentando-se de um modo que talvez seria impensável numa página. "Será a poesia a arte da escuta", eu pergunto no fim do meu poema "Polivox". Acho que é bem essa a questão. Poesia não é uma via de mão única. Se faz entre duas pessoas. Ou, como diria Paul celan, "o poema é um aperto de mãos".


No Polivox (trabalho composto de um livro, um cd e performances ao vivo), quis borrar as fronteiras entre texto escrito e oral, música e poesia, sonoplastia e fala. O objetivo era transitar entre as fronteiras entre os gêneros e as linguagens, buscando novas formas de veiculação da poesia e aproveitando todas as possiblidades técnicas e de experiências históricas (como a "poesia sonora") para este fim. O show, apresentado pela última vez dentro do projeto “Outros Bárbaros” no Itaú Cultural, em 2005 (de onde estão os trechos dos vídeos abaixo) era a seqüência do trabalho anterior, Polivox (2001) cuja intenção era criar uma viagem sonora, um território híbrido, onde música e poesia fossem indissociáveis. Polivox trazia a experiência com diversos estilos e dicções que marcam meu trabalho desde SolariumPolivox (2001). O CD abrigava linguagens e universos musicais e minhas afinidades eletivas: da canção brasileira”( “Paradoxos do Tempo”, “Mulher da Multidão”), citações orientais (“Thoth”), passando pelo doce stil nuovo da poesia italiana medieval (“O Amor é Uma Mulher de Ohos Invisíveis”) à balada “Ítaca”. Do jazz e blues (“A Solidão”, “O Assinalado”, Perfeitos Estranhos Blues”), com momentos mais intimistas de “fala ao seco” (como em “El Duende” e “Cerejas”). Do reggae (1994) a (Jim Morrison transluciferizado em “Ruído do Vidro”) ao funk, se aproximando da linguagem de Itamar Assunção e Marcos Muller (Clique, Plugue, Ligue”). Este território livre parece ser algo enraizado em nossa riquíssima cultura musical, na tradição da poesia e canções brasileiras. Mais do que experiências eletroacústicas, pelo menos neste trabaho tentei amalgamar a linguagem da música e a música da linguagem num único espetáculo, retomando as origens ritualísticas e performáticas da poesia.


Outras perguntas me são constantes durante o processo de criação e experimentação: o que acontece quando a palavra salta do espaço da página para o tempo da voz, do íntimo do ritmo, da articulação da música? Que faísca pode resultar do atrito entre essas duas linguagens? São possíveis novas abordagens dentro do território da canção, da música, da poesia falada? Pode a poesia, além de um exercício de imaginação, ser a arte da escuta, uma espécie de escuta arrebatada e ativa? Aqui, os poemas recebem três tratamentos básicos: musicados e transformados em canções; sob a forma de poetrilhas ou salas sonoras (aguçando uma relação cinemática com o texto); lidos “no seco”, explorando o som da linguagem em si (aproximando-se aqui da poesia eletroacústica).


Veja a matéria e ecesse as músicas e faixas no site CRONÓPIOS:

http://www.cronopios.com.br/site/poesia.asp?id=3221


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