OBRAS TRILHAM PERCURSO DA FUNDAÇÃO À CRISE DO VERSO
MARCELO PEN
Da fundação à crise na poesia. Esse é o percurso sugerido por dois recentíssimos lançamentos, "O Navegante" e "Mindscapes: Poemas", ambos traduzidos pelo poeta, ensaísta e editor londrinense Rodrigo Garcia Lopes, 39.
"O Navegante" pertence ao domínio oral anglo-saxão, com texto fixado por um monge no século 10. Ezra Pound, que verteu um grande trecho da obra para o inglês, disse em "O ABC da Literatura" que realizou a tradução "para que possam mais ou menos ver onde a poesia inglesa começa".
Já "Mindscapes" é uma coletânea da poeta modernista americana Laura Riding (1901-1991). Depois de uma recepção retumbante, em que foi elogiada por William Carlos Williams, Auden e até (com reservas) por Yeats, Riding abandonou a poesia por quase 30 anos.
Laura havia chegado a um impasse. Para ela, há um conflito entre a forma e o conteúdo da poesia. O artifício da linguagem literária teria deixado de expressar o dizer verdadeiro, o objetivo final da arte poética. Ou, como diz ela, "a verdade começa onde a poesia termina".
Riding é uma figura curiosíssima e polêmica. Filha de um militante bolchevique judeu (que aspirava para ela a condição de uma Rosa Luxemburgo ianque), decidiu para o desgosto do pai tornar-se poeta. Um dos fundadores do "New Criticism", Allan Tate, descobriu-a em 1924. Seu primeiro livro foi publicado pela editora de Leonard e Virginia Woolf. Muito mais tarde, Paul Auster dirá: "Nenhum escritor exigiu mais das palavras do que Laura Riding".
É preciso entender a atitude de Laura dentro do contexto histórico. Os modernistas procuraram aproximar a arte da vida. Muitas vezes, quando ela fala da "verdade" (da "primeva insonoridade da verdade"), está referindo-se ao que acreditava ser o mister poético, o de atingir a pulsão real da existência por meio das palavras. "Desde o começo, a poesia para mim era território da vida, não da literatura", escreveu.
No auge da carreira, em 1938, após publicar "Collected Poems", renega a poesia e muda-se com o novo marido, Schuyler Jackson, para uma fazenda da Flórida, onde se dedica ao comércio de frutas. Nos anos de 1960, Tate diz ter ouvido que Laura estava "em algum lugar lá embaixo na Flórida cultivando laranjas".
Não deve estranhar o fato de a judia Riding ter renunciado à literatura no início da Segunda Guerra Mundial, antecipando-se à máxima de Theodor Adorno de que "escrever poesia depois de Auschwitz é barbárie"."), está referindo-se ao que acreditava ser o mister poético, o de atingir a pulsão real da existência por meio das palavras. "Desde o começo, a poesia para mim era território da vida, não da literatura", escreveu.
N ão deve estranhar o fato de a judia Riding ter renunciado à literatura no início da Segunda Guerra Mundial, antecipando-se à máxima de Theodor Adorno de que "escrever poesia depois de Auschwitz é barbárie".
Doces bárbaros
"Bárbaros" pode ser a forma de muitos considerarem os tempos em que foi composto "O Navegante", quando as tribos dos anglos e dos saxões lutavam contra constantes ataques dos viquingues escandinavos. O poema pode ser visto como um longo lamento de um marinheiro, isolado no mar, dividido entre o anseio pela liberdade e os confortos da aldeia, entre a vida efêmera e a morte certa ("... uma entre três coisas // pesam na balança/antes da hora fatal // doença, velhice/ou ódio-de-espada").
Segundo Jorge Luis Borges, que traduziu o poema para o espanhol, a subjetividade lírica de "O Navegante" anuncia poemas de Arthur Rimbaud e de Walt Whitman. No posfácio da edição brasileira, Garcia Lopes observa que muitos "temas caros a toda poesia inglesa posterior estréiam em grande estilo em "O Navegante'".
Ele gastou dois anos para verter os 125 versos do poema. Antes, o que tínhamos era uma tradução de Augusto de Campos, baseada na versão inglesa de Pound. Lopes precisou aprender anglo-saxão e enfrentar algumas peculiaridades desse tipo de poesia, que não se baseia em estrofes e rimas, mas na aliteração, no ritmo sincopado e em compostos expressivos chamados de "kennings" ("estrada-da-baleia", por exemplo, quer dizer "mar").
"Gosto de aventura e tenho uma eterna curiosidade por poesia antiga, tanto quanto moderna", confessa Garcia Lopes à Folha. "Tive como ferramenta indispensável uma versão em hipertexto, literal e completa, do poema; e acesso a dezenas de outras traduções de apoio. Estou seguro quanto ao resultado, tanto que o livro é bilíngüe."
O tradutor acredita que a poesia de "O Navegante" e a de Laura Riding têm em comum a "investigação do consciente, da identidade, da mente que acerta contas consigo mesma". Laura, que nunca deu pelota para o peso da tradição, mas valoriza a eterna contemporaneidade da obra de arte, concordaria.
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O NAVEGANTE. Autor: anônimo. Tradução: Rodrigo Garcia Lopes. Editora: Lamparina. Quanto: R$ 25 (80 págs.).
MINDSCAPES. Autora: Laura Riding. Tradução: Rodrigo Garcia Lopes. Editora: Iluminuras. Quanto: R$ 42 (256 págs.).
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2512200411.htm