Rodrigo Garcia Lopes é um dos mais expressivos poetas brasileiros que iniciaram sua jornada na década de 1990. Solarium, publicado em 1994, é um registro de dez anos de
trabalho poético do autor e apresenta poemas “dos mais variados estilos,
com técnicas e texturas que seduzem e declaram a liberdade de evocar
diferentes performances em seu discurso”, como escreve Maurício Arruda
Mendonça na “orelha” do livro. Encontramos neste volume desde poemas que
exploram o espaço em branco da página, a geometria e a variação
tipográfica, com ecos da Poesia Concreta, até o haicai, gênero que
praticou com o pseudônimo de Satori Uso, na época em que atuou como
jornalista na Folha de Londrina (“formigas dragam / uma abelha / ainda
viva”; “pombos se aquecem / num resto / de sol”).
Os poemas mais característicos dessa fase de Rodrigo Garcia Lopes, no
entanto, são as composições mais discursivas, com versos longos,
próximos à prosa, imagens quase fotográficas da natureza e um intenso
lirismo, escritos numa linguagem direta e coloquial, como “O processo”:
“Música devorando plantas, nossas palavras. / Quer dizer, um ruído em
você, a água irisando / entre pedras imóveis. / Como aqui: / vendo
nuvens soprarem / chuvas para o sul, onde o deserto / parece tão perto /
e continua a rolar suas areias / como num movimento decisivo / de um
jogo de Go”. Visibilia, publicado em 1997, traz poemas mais concisos em
que as rimas, aliterações e outros recursos sonoros são usados para
construir os jogos do pensamento, numa unidade entre fundo e forma. Uma
peça significativa desse volume é o poema “Fugaz”: “o outro é aquele que
ficou à margem / no espanto de um pronome, / no corpo de uma brisa
suave; / o outro é como uma fome / pluma à deriva, à distância, ou
quase. // estranho em sua própria viagem, / garrafa com uma mensagem, /
olhar durando numa flor, / sem nome, secreta, selvagem”.
Poemas polifônicos
É possível reconhecer afinidades entre a poética de Rodrigo Garcia
Lopes e a de Paulo Leminski, que também conciliou a fala coloquial e o
humor com as rimas e outros jogos de linguagem, mas são autores com
projetos literários diferentes. Rodrigo Garcia Lopes tem vocação para
escrever poemas longos, polifônicos, que incorporam cenas do cotidiano
misturadas a referências literárias, cinematográficas e mitológicas de
diferentes idiomas e culturas, fazendo do próprio tecido poético a
imagem do mundo caótico em que vivemos. Esse projeto alcançou o seu
nível de maior radicalidade inventiva com Polivox, publicado em 2001.
Como o próprio título indica, este é um livro plural, onde encontramos
desde um sutil e delicado lirismo, que recorda a canção popular, até o
impacto visual de certas imagens e a violência tonal de farpas vocais. O
poeta fratura a lógica narrativa e sequencial do discurso, operando o
corte imprevisto e a montagem de frases, como se o volume fosse um
cinema em versos.
A metáfora está presente, até com fúria barroca (“Céus de cristal
líquido. / Limalhas de ferro formam uma rosa imantada”), mas o que
predomina é a reflexão crítica, via linguagem, sobre a época ruidosa em
que vivemos, época de violência e banalidade em que o mercado, hostil ao
artista e à obra de arte, se sobrepõe a qualquer esforço de
reconstrução da ética e do humanismo, impondo a hegemonia do
lugar-comum.
Em vez de entoar um coral melancólico, porém, Rodrigo re- gistra
imagens da aldeia enlouquecida, com sátira e ironia, usando inclusive,
de maneira paródica, recursos do videoclipe e o voca- bulário digital.
Assim, por exemplo, na peça de abertura do livro, que recorda um jogo
alucinado (“On line. Psiu: ‘Épico é poema / contendo história’. / E se
um Plano de Saúde / Pudesse expressar / sua / Individualidade?”). Em
contraste com o Leviatã midiático, que intenta o exílio do refinamento
pela imposição de caricaturas alienantes, Rodrigo compõe sua sinfonia
com símbolos vivos de múltiplos territórios e culturas.
Ao longo de Polivox, vamos encontrar referências a mitologias,
poéticas e religiões, como o budismo e o xamanismo, concepções mais
orgânicas do que pode ser o humano e o estar no mundo, superando
fronteiras espaciais e temporais e também balizas de repertório. Na
seção do livro chamada “Thoth”, o autor dissolve as noções de prosa e
poesia, razão e onirismo, para compor uma elegia egípcia ao deus dos
escribas e da linguagem (“Sou Thoth, deus dos dizeres, senhor dos
sentidos / o que assimila o semblante / de todos os deuses”).
Em outra peça de boa fatura, nesta mesma seção, o autor diz: “A deusa
lua entra no salão de espelhos, em transe: / para onde olha, linguagem
(vibrátil), estranhos / estilhaços de um corpo que mu- tua / mente se
reflete: até o infinito. / E feitos da mesma imagem / (que se rebate) /
até o infinito”.
O movimento alucinado de imagens também comparece em Nômada, livro
mais recente de Rodrigo Garcia Lopes, publicado em 2004, onde
encontramos insólitas composições como esta: “Levamos mapas que
modificam e se estendem a cada passo sobre a língua do arvoredo ou
universo plano de pétala pensada por um animal, céu virando o rosto, a
curvatura de sua mente, esse mais longo dos dias” (“Fragmentos em
movimento”). Maria Esther Maciel, a propósito desse trabalho, escreve:
“Nômada se aproxima tanto da música quanto do cinema. Seus trânsitos se
evidenciam por blocos rítmicos sem ponto de origem, sempre no meio da
linha ou da página e por imagens em movimento. Travellings, closes,
avanços, recuos, velocidades e lentidões marcam sua temporalidade, seu
devir. (…) Aliás, todo o livro se estrutura como uma totalidade aberta,
uma montagem rítmica e visual”. Rodrigo Garcia Lopes, que também é
músico e compositor, lançou ainda dois CDs, Polivox e Canções do Estúdio
Realidade e já se apresentou no programa Poesia pra tocar no rádio, do
Centro Cultural São Paulo, participou do I Seminário de Ação Poética e
publicou uma plaquete pela coleção Poesia Viva, editada pela Curadoria
de Literatura e Poesia do Centro Cultural São Paulo.
Claudio Daniel >>> poeta, mestre em Literatura
Portuguesa pela Universidade de São Paulo, curador de Literatura e
Poesia do Centro Cultural São Paulo e editor da revista Zunái (www.revistazunai.com)