sexta-feira, novembro 14, 2014

Crime feito em casa/ Matéria no VALOR ECONÔMICO sobre "O Trovador" e outros lançamentos


CRIME FEITO EM CASA
Por Rodrigo Casarin | Para o Valor, de São Paulo

     Brandãozinho foi sequestrado e morto a tiros. Um velho tradutor reaviva cantos obscuros de sua mente que podem levar à origem de diversos crimes. A vítima de assassinato é encontrada com uma canção trovadoresca rabiscada em um papel enfiado dentro de sua boca. Um homem dopa uma mulher e a sequestra carregando em uma mala. Professora é encontrada morta em circunstâncias misteriosas dentro de um prédio da USP. O corpo de um homem morto surge em uma praia do Rio. Os crimes revelam que o momento do Brasil é bastante positivo... Ao menos para a literatura policial.

     Esses são os casos explorados em "Bellini e o Labirinto", de Tony Bellotto, "Um Lugar Perigoso", de Luiz Alfredo Garcia-Roza, "O Trovador", de Rodrigo Garcia Lopes, "Dias Perfeitos", de Raphael Montes, "Alice", de Bernardo Kucinski, e "A Primeira História do Mundo", de Alberto Mussa, todos lançados neste ano.
     Novidades de autores que há tempos trilham seu caminho no gênero, a incursão nesse tipo de narrativa de escritores experientes e o aparecimento de novos nomes que já surgem com força no mercado, tal qual Montes e os mais de 13 mil exemplares vendidos de "Dias Perfeitos", indicam que a literatura policial vive um momento especial no país.
     E ainda há mais por vir. No Paraná está se armando uma briga entre famílias por causa de uma discussão acadêmica sobre Nietzsche. Integrantes de ambos os lados morrerão sucessivamente e tudo estará relatado em "Que fim levou Juliana Klein?", de Marcos Peres, programado para 2015.

    A presença da narrativa policial aparece na história da literatura brasileira de forma bastante inconstante. No ensaio "Existe uma literatura policial brasileira?", Flávio Moreira da Costa, organizador da antologia "Crime Feito em Casa - Contos Policiais Brasileiros", estabelece que os primeiros traços do gênero apareceram no Brasil, ainda timidamente, em narrativas de Machado de Assis, Lima Barreto, João do Rio e Olavo Bilac. Contudo, somente na década de 1920 surgiu um escritor nacional que de fato produzia literatura policial: Medeiros e Albuquerque, que escreveu contos e, junto de Coelho Neto, Afrânio Peixoto e Viriato Correia, colegas da Academia Brasileira de Letras, publicou "Mystério", apontado como o primeiro romance policial brasileiro.
Ao longo da história, muitos autores consagrados, como Raquel de Queiroz, Jorge Amado e Guimarães Rosa, incursionaram pela literatura policial. Dois dos que mais fizeram sucesso explorando o gênero são Marcos Rey e Rubem Fonseca. Mas, apesar desses e de diversos outros escritores que produziram peças do tipo, Bellotto relembra que, em 1995, quando publicou "Bellini e a Esfinge", sua obra de estreia, o gênero não era produzido de maneira constante no país. "Não havia de fato o que chamar de literatura policial; hoje tem". Garcia-Roza complementa. "O romance policial ainda estabelece seu terreno no Brasil. Ele começou, em termos editoriais com alguma expressão, relativamente há pouco tempo, duas décadas, talvez. Antes eram só livros isolados."

     Garcia Lopes diz acreditar que o seu "O Trovador" chegou em boa hora. "O gênero vive um bom momento, mas ainda de amadurecimento", diz. É exatamente por isso que Garcia-Roza argumenta que "ainda não há massa crítica para falar de literatura policial brasileira, só de literatura policial feita no Brasil".

     É consenso entre ou autores que para chegar à maturidade será preciso superar o preconceito. Garcia-Roza, por exemplo, relata que o policial é visto como algo à parte da literatura brasileira em geral e fica incomodado quando o questionam se considera esse tipo de narrativa de segunda categoria. "Só o fato de me perguntarem isso já é sinal de que algo realmente existe."

     Em seu novo romance, Garcia Lopes procurou levantar reflexões históricas e questões de identidade, moral e corrupção, entre outros, justamente para mostrar que o gênero permite tratar de assuntos relevantes. "O policial brasileiro ainda tem pouca tradição em nosso sistema literário e encontra resistência por parte da crítica, sendo considerado como subliteratura ou mera literatura de entretenimento", opina. Peres segue uma toada semelhante. "Vejo como perigosa heresia a rotulação que, na literatura, o gênero x ou y é menor. Os livros que me tocam são aqueles que extrapolam o gênero, que não estão preocupados em ser apenas isso ou aquilo. O que me interessa no policial, como em qualquer outro gênero, é apenas uma coisa: gosto de bons livros, dos que sinto como pancadas na cara e reverberam aqui dentro. O resto é balela."
Olhando o cotidiano do país, os autores argumentam que o Brasil tem potencial para produzir uma das melhores literaturas policiais do mundo. "Aqui os crimes acontecem em todas as escalas sociais, desde os casos de colarinho-branco até os mais banais. Somos pródigos no crime, também deveríamos ser na literatura policial", diz Bellotto. Garcia Lopes completa lembrando que os jornais trazem diariamente casos de corrupção, violência, falcatruas e crimes arquivados, entre outros.

     Quem tem uma visão um pouco diferente é Garcia-Roza. O escritor confabula que talvez o leitor não procure nas narrativas policiais um espelho do real. "Sem dúvida a leitura policial puxa mais pelo imaginário do leitor do que pela percepção da realidade." Para fundamentar sua opinião, argumenta que o gênero faz sucesso e tem representantes em países mais diversos, como Itália, Japão e as nações nórdicas. "Em culturas com organizações de Estado e valores tão diferentes, é como se a literatura policial pairasse acima dessas diferenças e fizesse o próprio espaço."

"O policial brasileiro ainda tem pouca tradição em nosso sistema literário e encontra resistência por parte da crítica", observa Garcia Lopes

Em todos esses lugares o gênero cresceu tendo algumas regras como o grande norte para uma história de sucesso: trama interessante e bem construída, enigma a ser desvendado, cenário atraente, personagens complexos, célebres detetives e grandes vilões. A partir disso, tendências foram surgindo. Garcia-Roza aponta um caminho que vem sendo cada vez mais percorrido pelos escritores do gênero: se antes o objetivo era descobrir quem cometeu um crime, agora, em muitos casos, essa informação está à disposição do leitor logo no começo da narrativa e as perguntas principais passam a ser "como o crime foi cometido?" e "por que o indivíduo fez aquilo?" "É como se a literatura policial tivesse se humanizando mais, não romanticamente, mas por adentrar pelo humano, inclusive no que ele tem de mal." Talvez seja com essa verve "mais humana" que o Brasil construirá uma literatura policial para chamar de sua.

http://www.valor.com.br/cultura/3778464/crime-feito-em-casa…

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