O Estadão de hoje publicou a entrevista que fiz com o poeta, tradutor e ecologista GARY SNYDER, um dos últimos remanescentes da geração beat. Ele foi um dos entrevistados para o documentário que Walter Salles Jr. está preparando sobre a beat generation. Eu o entrevistei na cidadezinha de Hickory, na Carolina do Norte. A conversa aqui está na íntegra. Divirtam-se com a lucidez e sabedoria de um velho mestre. Vamos por partes:
sábado, 30 de maio de 2009
'Preciso estar pronto para a poesia'
Para Gary Snyder, a escrita em versos é uma surpresa a partir de uma ideia 'que vem de outra parte'
Rodrigo Garcia Lopes - Especial para O Estado
'Danger on Peaks: Poems' foi publicado em 2004. Por que você demorou tanto para publicar poesia novamente (seu último livro dedicado ao gênero havia sido ‘Mountains and Rivers Without End’, de 1996)? O senhor acha que às vezes é mais importante viver do que escrever?
Estou sempre escrevendo poemas. Quando me sinto estimulado a escrever? Quando me sinto estimulado a escrever! A poesia não é prosa: na prosa você pode se atirar e se forçar a escrevê-la. Já com a poesia é preciso esperar que a voz chegue até você. É uma questão de inspiração, de se conseguir uma ideia criativa que o surpreende e que vem de outra parte. Meu trabalho é sempre estar pronto para a poesia. A escrita de um novo poema é sempre uma surpresa.
No poema 'Waiting for a Ride' (esperando uma carona), do último livro, você escreve: "a maior parte de minha obra / tal como é / está feita". Como você vê seu trabalho, retrospectivamente? Quais poemas você acha que sintetizam sua poética?
Meu trabalho é tão diverso, e há tantos tipos de poemas, que existe um ecossistema literário inteiro aí. Não há um exemplo de um poema em particular que eu sinta interesse, orgulho ou que eu tenha preferência, mesmo porque eles servem funções diferentes. Cada um tem um papel: não fosse assim, eu não deixaria ser publicado.
Que paralelos você traça entre Zen e poesia, em seu caso? Seus poemas incorporam a precisão e concisão da poesia chinesa e japonesa, e a percepção detalhada e afinada cara ao Budismo. Como a poesia e arte chinesa e japonesa afetaram sua sensibilidade?
Esta é uma questão interessante. Em primeiro lugar, é preciso fazer uma distinção entre a sensibilidade Ch'an (ou Zen) e as artes. Nem todos os grandes artistas do Extremo Oriente - que são Japão, China, Coreia e Taiwan - foram necessariamente influenciados pelo Zen, mas um número surpreendente o foram, especialmente durante as dinastias chinesas S'ung e T'ang, bem como durante boa parte da história do Japão. No entanto, é preciso fazer uma distinção entre poética e trabalho artístico e algo como a prática Zen. A prática Zen o distancia da arte: ela é uma prática de meditação e de investigação profundas e, enquanto tal, não está preocupada com expressão ou representação. Claro que a prática Zen está preocupada com a comunicação, e ela tem seus próprios métodos de se comunicar que estão embebidos na literatura Zen, com o ensino da literatura, em coleções como o Mumonkan, ou O Portal Sem Portão, ou os escritos extraordinários do filósofo Dôgen [(1200 - 1253), fundador da escola Soto de Zen Budismo], no século 13. Qualquer artista pode aprender muito com a leitura destes textos, mas eles não representam a poesia em si. A psiquê estética do Extremo Oriente sempre valorizou a concisão, a observação clara, a condensação, o registro direto da experiência. Em parte, isso acontece porque ela não tem uma carga teológica ou ideológica a dirigindo, como acontece em toda a literatura europeia pós-romana e cristianizada, que possui na maioria das vezes um componente teológico do qual é muito difícil se livrar. Por isso, a poesia chinesa do século 8 soa muito moderna porque fala de história, de amizade, de ideias culturais, bem como ser uma resposta direta para o mundo natural. Este é um caso interessante, como no caso de tradições japonesas como o haiku, sobre a qual escrevo bastante em Back on the Fire. O haiku agora é um valor internacional, sendo ensinado em toda parte. Falando nisso, há inclusive alguns haikaístas nipo-brasileiros maravilhosos, e que escrevem tanto em português quanto em japonês.
Em Back on the Fire você fala elogiosamente de Masaoka Shiki, por exemplo. Quem são os melhores haikaístas, na sua opinião?
Ah, não respondo perguntas como essa. É como comparar laranjas e maçãs.
Você acredita que existe uma imaginação haikaística? Como ela pode ser aplicada a poemas mais longos, como seu 'Mountains and Rivers Without End'?
Em primeiro lugar, é preciso separar a forma do haiku da imaginação do haiku. Nem todos os poemas curtos e breves são haikus. Isso é uma coisa que tenho que explicar muitas vezes, como fiz recentemente para um alemão que me entrevistou por e-mail. Ele queria que eu dissesse que todo poema curto é um haiku. Não é este o caso. O haiku tem uma estética específica e, neste sentido, quero dizer que o que existe é uma imaginação do haiku. As pessoas tropeçam nela mas nem sempre a obtém, a tem, ela é aberta, fresca e sem ego, mas não sempre está no "momento" ou nem sempre é "zen". Este é um assunto complicado, não é tão simplório quanto pode parecer. Não gosto de chamar de haiku os poemas escritos em poucas linhas, a menos que eles se encaixem de fato dentro da estética do haiku. Acho maravilhoso que pessoas na Dinamarca, Itália, Estados Unidos ou no Brasil, sobretudo crianças, estejam aprendendo haiku nas escolas ou escrevendo poemas curtos influenciados pelo haiku. É bonito isso, mas não precisa necessariamente ser haiku. É mais útil dizer que o haiku é um poema japonês escrito numa forma específica mas nem todos os poemas japoneses curtos são haikus. Sugiro a leitura de um livro excelente, escrito por Haruo Shirane, Traces of Dreams: Landscape, Cultural Memory, and the Poetry of Basho [rastros de sonho: paisagem, memória cultural e a poesia de Bashô], que é a primeira descrição bem informativa e de senso comum do mundo social em que o haiku se desenvolveu no Japão dos séculos 18 e 19. O haiku também é um fenômeno sociológico.
Há alguns anos o haiku está em voga no Brasil. Alguns críticos, no entanto, têm dito que ele tem tido uma influência negativa na nossa poesia, se tornando um maneirismo, uma maneira "fácil" de escrever poesia. Poucas pessoas sabem, como você afirma em Back on the Fire, da enorme influência que o haiku teve sobre o modernismo.
O que chamamos de influência do haiku na poesia moderna, pelo menos na poesia escrita em inglês, é a influência sobre o Imagismo, e claro que Ezra Pound fez parte disso em algum momento. O haiku não é necessariamente Imagismo, nem uma imagem. De fato, muitas vezes são duas imagens justapostas que se intersectam. Mas outra coisa que não é realmente percebida é que o haiku é escrito em japonês. Isso significa que a gramática é totalmente diferente,a gramática é totalmente fora do quadro de qualquer coisa que conheçamos nas línguas germânicas ou românicas. Parte do poder de um haiku japonês é o que ele faz em termos de sintaxe. Você sabe o que isso significa? Em primeiro lugar, no japonês os verbos sempre aparecem no fim da frase, mas não se usa frases no haiku. Se o jogo sintático é uma parte da força do haiku, como alguém que não conhece japonês pode apreciar isso? Do mesmo modo, há muitas coisas na poesia portuguesa e inglesa que só pertencem a essas línguas e que somos incapazes de traduzir. Então não devemos nos preocupamos com isso. No entanto, entendo que a escrita de um poema curto pode virar um maneirismo. Mas isso passa. Podemos aprender algo com o modo como o haiku funciona na escrita de poemas longos? Em relação ao poema longo, a questão é mais sobre o que podemos aprender com o Imagismo em relação à escrita de poemas longos, o que já foi demonstrado por Ezra Pound, como algumas coisas que ele fez em seus melhores "Cantos". Muitos não são muito bons. Ele apontou uma maneira, e muitos modernistas da primeira metade do século 20 tocaram no que o Imagismo pode fazer. Eu uso pequenas imagens precisas disso ou daquilo o tempo todo em minha poesia, inclusive em poemas mais longos. Suponho que tenha aprendido isso com o haiku e com o Imagismo, mas para dizer a verdade nem costumo pensar sobre isso.
fim da parte 1
Snyder, Ginsberg ao fundo, anos 60