quinta-feira, agosto 30, 2007

O POETA INEXISTENTE QUE CRIOU VIDA (Satori Uso no Estadão de hoje)

Única foto conhecida de Satori Uso (Autor desconhecido).

Quando você diz, em japonês, "Uso, uso, uso yo!", você está dizendo "É mentira, mentira, mentira!"USO literalmente significa "mentira", "falsidade", "fake". Quando você diz "USO!", você quer dizer "Não acredito!", "É inacreditável! " etc.


Jotabê Medeiros escreveu matéria no Estadão de hoje sobre a gênese do personagem.



O POETA INEXISTENTE QUE CRIOU VIDA

Sucesso do curta "Satori Uso" revela que a estratégia do heterônimo, cultuada por Pessoa e Borges, está se reinventando


JOTABÊ MEDEIROS


A poesia dele toca o espectador. Sua figura arredia, do tipo que busca a invisibilidade, também emociona. Mas há um porém: ele não existe, nunca existiu. O poeta japonês Satori Uso, no entanto, tem feito sucesso como protagonista de um filme de 17 minutos, cujo ponto de partida é Satori Uso, filme feito por Jim Kleist, um cineasta americano que também não existiu.


Satori Uso, o personagem, foi criado pelo escritor Rodrigo Garcia Lopes em 1985, quando ele editava uma página literária dominical no jornal Folha de Londrina. ''Eu acabara de voltar da Europa, estava muito influenciado pelo zen-budismo e pela poesia oriental. Eu queria muito publicar esses novos poemas, que pareciam refletir uma outra personalidade. Como achei que seria antiético publicar na página que eu mesmo editava, resolvi criar um heterônimo'', conta Rodrigo, que há um ano e meio leciona literatura na Universidade da Carolina do Norte, em Chapel Hill, nos Estados Unidos.

Em japonês, satori quer dizer iluminação, e uso é mentira, mentiroso. Satori Uso seria então uma falsa iluminação. ''Londrina é uma cidade de grande colônia japonesa, por isso me pareceu verossímil, um lugar onde temos inclusive reuniões de grupos de haicais. Muita gente da colônia o procura até hoje. Folheando um livro de uma artista plástica nipo-brasileira, achei uma foto em preto-e-branco de um velhinho de boina tomando missô. Olhei e pensei: eis o Satori Uso!''.


A página foi publicada uma semana depois da ''morte'' de Satori Uso (1925-1985). Ou seja, o poeta já nasceu morto. O escritor Paulo Leminski, quando leu aquilo, ligou para Garcia Lopes de Curitiba para pedir informações. ''Mas como você me escondeu isso? Eu preciso saber de tudo!''''. Rodrigo se desmascarou: ''Leminski, o Satori Uso não existe". Leminski deu uma gargalhada: ''Melhor ainda!''


Rodrigo Garcia criou uma biografia e uma personalidade para o autor. "Entre outras coisas, ele teria participado da vanguarda japonesa e imigrado para a Califórnia no fim dos anos 50, onde virou amigo dos beats e mergulhou no jazz e na cultura americana. Daí ele recebeu um convite da família Akiro para imigrar para o Brasil. Na viagem de navio perdeu toda sua obra. Passou a ser uma pessoa calada e cada vez mais misteriosa, um poeta das sombras. Escrevia seus haikais em tiras de papel que ele jogava imediatamente após escrevê-los. Os discípulos iam literalmente apanhando seus poemas pelo chão''.

Há um ano, o cineasta Rodrigo Grota, fascinado pelo personagem, resolveu fazer um filme. Garcia Lopes, além de ceder o personagem e seus poemas, foi co-autor do roteiro e indicou o ator, o escritor Rogério Ivano, que materializaria uma figura que só existia na sua cabeça. Ele considera que não há nada de tão novo na invenção de heterônimos, personas poéticas e literárias. ''Na época em que criei o poeta no jornal, também havia a intenção de mexer com o conceito de 'verdade' jornalística, e isso acabou desaguando num documentário fake. Satori habita um terreno movediço entre ficção e verdade, além da questão da autoria. É uma faca de dois gumes para quem inventa um personagem''.


A figura de um poeta japonês de escrita erudita perdido nos campos do Norte do Paraná é familiar a quem é da região. É célebre o rigor do fotógrafo-agricultor Haruo Ohara (1909-1999), cujas fotos chegaram ao Masp.


Satori é dessa linhagem. ''Um apaixonado pela vida, pela linguagem, e as marcas do zen-budismo: o culto ao silêncio, à natureza, o humor, a aceitação das coisas como são. A capacidade de encarar a dor e as perdas com humor, com leveza, às vezes até com certo sarcasmo'', diz Garcia Lopes. ''Como diria Flaubert, Satori Uso sou eu. Assumi com tanta veemência este heterônimo, que certos poemas que escrevo já designo como autoria de Satori Uso, como se eles pertencessem ao personagem''.




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