Um tradutor no centro de “O trovador”, de Rodrigo
Garcia Lopes
Jornal Rascunho, dezembro de 2018
Em O
trovador, de Rodrigo Garcia Lopes, vemos um tradutor no papel de
protagonista. Já escrevi em outras ocasiões, neste mesmo espaço, sobre
tradutores como protagonistas em romances. Lembro-me dos livros A
tradutora, de Cristovão Tezza, e Travesuras de la niña mala, de
Mario Vargas Llosa.
O
trovador não é uma obra sobre
tradução, claro. Tampouco há grandes reflexões sobre o ofício tradutório. Ainda
assim, a tradução permeia o romance de fora a fora.
No
livro de Garcia Lopes, o tradutor é o escocês Adam Blake, funcionário da
companhia britânica de colonização de terras Paraná Plantations. A tradução que
nos interessa é a de uma antiga trova escrita em provençal.
Blake
vê na velha trova a chave do mistério que tenta decifrar — uma série de
assassinatos na Londrina da década de 1930. Blake revira o texto do avesso.
Pesquisa. Visita bibliotecas. Consulta especialistas. Demora-se na reflexão, em
meio às desventuras do romance. Busca o “sentido misterioso” dos versos provençais.
O
protagonista, como todo tradutor, enfrenta os obstáculos clássicos que qualquer
texto impõe àquele que quer decifrá-lo, incluindo, entre outros, a distância
temporal e a ausência do autor. Em entrevista com o padre Helmut Braun, um dos
especialistas, Blake manifesta sua aflição — sentimento talvez comum a todo
tradutor: “Há algumas palavras que não entendo. Preciso saber mais sobre a vida
desse trovador. Queria mergulhar no universo e no tempo dele, para ser fiel a
seu espírito e melhor traduzi-lo”.
É
a busca da fidelidade por meio do estudo não apenas do texto, mas do autor e de
sua circunstância. Blake fazia um trabalho louvável, digno dos melhores da
raça.
O
padre, por sua vez, confessa ter suas próprias teorias sobre tradução:
“acredito que não há nada que não seja traduzível. Esse é meu credo. Minha
primeira paixão foi a filologia, os meandros e caminhos que percorrem os
sentidos de uma palavra, a história de sua existência através dos tempos”.
Nota-se
a complementação entre o esforço de Blake no sentido de compreender o trovador
e seu tempo, de um lado; e, de outro, o conselho do padre sobre como enfrentar
as palavras, o texto e seus sentidos esquivos.
A
tradução tem seus mistérios. Também tem seus meandros e suas exigências em
termos de denodo e tarimba, entre outras qualidades.
Adam
Blake era obstinado. A trova era difícil. Nela havia uma palavra de sentido
especialmente obscuro, naquele contexto: noigandres —
“palavra considerada o locus classicus para a
intradutibilidade da canção dos trovadores”. Não apenas seu sentido era
obscuro. Sua grafia cambiante lhe enevoava a própria forma: “a palavra aparece
em pelo menos sete variantes diferentes”.
Blake
trabalha duro. Monta e desmonta a palavra. Sonda seu sentido mais profundo:
“anagramas mais perfeitos são aqueles que funcionam como tradução, comentário
ou reflexão sobre a palavra escolhida. É um jogo em que a palavra faz gerar
cópias dela mesma, mas em novas combinações e sentidos”.
São
muitas as combinações possíveis. E cada uma delas gera nova profusão de
sentidos. Vicissitudes da tradução, empecilhos para todo tradutor. O texto nem
sempre é feito para ser fácil.
A
pesquisa é longa, mas frutífera. Blake encontra enfim uma boa pista. Acha a
chave. Bastaram olhos e cérebro para ler e traduzir. ler e traduzir.
EDUARDO FERREIRA
É tradutor, diplomata e jornalista. Vive em Brasília (DF).
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