terça-feira, janeiro 15, 2019

Um tradutor no centro de “O trovador”, de Rodrigo Garcia Lopes


Um tradutor no centro de “O trovador”, de Rodrigo Garcia Lopes
Jornal Rascunho, dezembro de 2018


     Em O trovador, de Rodrigo Garcia Lopes, vemos um tradutor no papel de protagonista. Já escrevi em outras ocasiões, neste mesmo espaço, sobre tradutores como protagonistas em romances. Lembro-me dos livros A tradutora, de Cristovão Tezza, e Travesuras de la niña mala, de Mario Vargas Llosa.
     O trovador não é uma obra sobre tradução, claro. Tampouco há grandes reflexões sobre o ofício tradutório. Ainda assim, a tradução permeia o romance de fora a fora.
     No livro de Garcia Lopes, o tradutor é o escocês Adam Blake, funcionário da companhia britânica de colonização de terras Paraná Plantations. A tradução que nos interessa é a de uma antiga trova escrita em provençal.
     Blake vê na velha trova a chave do mistério que tenta decifrar — uma série de assassinatos na Londrina da década de 1930. Blake revira o texto do avesso. Pesquisa. Visita bibliotecas. Consulta especialistas. Demora-se na reflexão, em meio às desventuras do romance. Busca o “sentido misterioso” dos versos provençais.
     O protagonista, como todo tradutor, enfrenta os obstáculos clássicos que qualquer texto impõe àquele que quer decifrá-lo, incluindo, entre outros, a distância temporal e a ausência do autor. Em entrevista com o padre Helmut Braun, um dos especialistas, Blake manifesta sua aflição — sentimento talvez comum a todo tradutor: “Há algumas palavras que não entendo. Preciso saber mais sobre a vida desse trovador. Queria mergulhar no universo e no tempo dele, para ser fiel a seu espírito e melhor traduzi-lo”.
É a busca da fidelidade por meio do estudo não apenas do texto, mas do autor e de sua circunstância. Blake fazia um trabalho louvável, digno dos melhores da raça.
    O padre, por sua vez, confessa ter suas próprias teorias sobre tradução: “acredito que não há nada que não seja traduzível. Esse é meu credo. Minha primeira paixão foi a filologia, os meandros e caminhos que percorrem os sentidos de uma palavra, a história de sua existência através dos tempos”.
Nota-se a complementação entre o esforço de Blake no sentido de compreender o trovador e seu tempo, de um lado; e, de outro, o conselho do padre sobre como enfrentar as palavras, o texto e seus sentidos esquivos.
A tradução tem seus mistérios. Também tem seus meandros e suas exigências em termos de denodo e tarimba, entre outras qualidades.
     Adam Blake era obstinado. A trova era difícil. Nela havia uma palavra de sentido especialmente obscuro, naquele contexto: noigandres — “palavra considerada o locus classicus para a intradutibilidade da canção dos trovadores”. Não apenas seu sentido era obscuro. Sua grafia cambiante lhe enevoava a própria forma: “a palavra aparece em pelo menos sete variantes diferentes”.
     Blake trabalha duro. Monta e desmonta a palavra. Sonda seu sentido mais profundo: “anagramas mais perfeitos são aqueles que funcionam como tradução, comentário ou reflexão sobre a palavra escolhida. É um jogo em que a palavra faz gerar cópias dela mesma, mas em novas combinações e sentidos”.
     São muitas as combinações possíveis. E cada uma delas gera nova profusão de sentidos. Vicissitudes da tradução, empecilhos para todo tradutor. O texto nem sempre é feito para ser fácil.
A pesquisa é longa, mas frutífera. Blake encontra enfim uma boa pista. Acha a chave. Bastaram olhos e cérebro para ler e traduzir. ler e traduzir.

EDUARDO FERREIRA

É tradutor, diplomata e jornalista. Vive em Brasília (DF).


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