segunda-feira, janeiro 08, 2018

Resenha de 'O Imperador do Sorvete", de Wallace Stevens, na Folha

EDIÇÃO REVISTA E AMPLIADA SALIENTA A POÉTICA DE WALLACE STEVENS


O IMPERADOR DO SORVETE E OUTROS POEMAS
ÓTIMO
AUTOR Wallace Stevens
SELEÇÃO, TRADUÇÃO E NOTAS   Paulo Henriques Britto
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 49,90   (336 págs.)

RODRIGO GARCIA LOPES
Especial para a Folha

      O presidente da companhia de seguros comentou, quando seu vice estava no hospital, ao saber de seu bom humor com as enfermeiras: “A menos que me dissessem que ele tinha sofrido um problema cardíaco, eu jamais saberia que ele tinha coração”. Poucos colegas sabiam que, nas horas livres, aquele executivo workaholic, reservado, meio antipático, se transformava num mago das palavras, um exuberante artífice do verso. Era Wallace Stevens (1875-1955), um poeta capaz de causar, em muitas peças, aquela emoção e assombro que só sentimos diante das grandes obras de arte.
      Sua poesia volta a circular entre nós com O Imperador do Sorvete e Outros Poemas, em competente tradução de Paulo Henriques Britto. Trata-se de uma edição revista e ampliada de Poemas (1987). Há décadas indisponível, o livro foi pioneiro ao introduzir no Brasil a obra de um dos grandes nomes da poesia modernista americana. Britto acrescentou 16 novos poemas aos 20 da primeira edição. Sua seleção ficou mais robusta e representativa das várias fases de sua escrita. Dos poemas imagistas e exuberantes de sua obra-prima “Harmonium” (que marca sua estreia tardia em livro, aos 44 anos) temos a inclusão de joias como “Peter Quince ao Cravo”, “Tatuagem” e, sobretudo, “O Homem de Neve”. Seus poemas longos e meditativos estão representados em peças como “A Ideia de Ordem em Key West”, “As Auroras Boreais do Outono” e “Apontamentos para Uma Ficção Suprema”. Além de trazer notas, a seleção contempla alguns poemas secos e crípticos do último período (como “Meramente Ser” ou “Ao Sair da Sala”) e três não reunidos em livro pelo autor. Em muitos casos as revisões foram pontuais, fazendo os poemas ganharem em beleza e precisão (“Caso do Jarro”). Já o misterioso poema-título recebeu uma revisão geral: dos 16 versos, 10 foram retraduzidos. Britto, como brilhante poeta e tradutor que é, se sai muito bem da tarefa de transpoetizar para o português o virtuosismo verbal, imagístico e rítmico deste mestre da logopeia, “a dança da inteligência entre as palavras”.
      Uma chave para o leitor entrar no universo de Stevens é ter em mente que um de seus temas favoritos é a relação entre a realidade e a imaginação. Ambas se expandem e se fundem quando articuladas pela “suprema ficção” da poesia e sua força ordenadora. É o que ocorre em muitos poemas, como “Tatuagem”: “A luz lembra uma aranha. / Caminha sobre a água. / Caminha pelas margens da neve. / Penetra sob as tuas pálpebras / E espalha ali suas teias – / Duas teias. // As teias de teus olhos / Estão atadas / À carne e aos ossos teus / Como a um caibro ou capim. // Há filamentos de teus olhos / Na superfície da água / E nas margens da neve”.
     Embora seja considerada hermética e solipsista (não haveria nada além do mundo que o “eu” fabrica), a obra de Stevens é um convite à aventura e às descobertas que a investigação poética do mundo pode proporcionar. Como ele nos provoca, no magistral “O Homem do Violão Azul”: “Jogue fora as luzes, as definições. / Diga o que você vê na escuridão”.


Rodrigo Garcia Lopes é poeta, romancista e tradutor, autor de O Trovador (Record, 2014), Experiências Extraordinárias (Kan, 2015) e Epigramas, de Marcial (Ateliê, 2017).

Nenhum comentário: