Poeta polifônico, John Ashbery se manteve aberto a inovações
Bebeto Matthews/Associated Press | ||
O poeta americano John Ashbery, morto no domingo aos 90 |
John Ashbery, que morreu aos 90 anos em sua casa de Hudson, Nova York, no domingo (3), foi um dos poetas americanos mais importantes do século 20. Foi também editor e crítico de arte e de poesia, tradutor e professor.
Conseguiu unanimidade mesmo entre críticos antagônicos, como Marjorie Perloff e Harold Bloom –este chegou a afirmar que Ashbery representava, para a segunda metade do século 20, o que Wallace Stevens e W.B. Yeats representaram para a primeira.
Dono de uma poesia polifônica, exuberante e exploratória, interessada em investigar o que ele chamava de "o presente mágico", escreveu nas mais diversas formas, do poema em prosa à sestina.
Mesmo considerado difícil e hermético, criou uma legião de leitores. Foi um mestre da logopeia, "a dança da inteligência entre as palavras".
Seu "Autorretrato num Espelho Convexo" é uma obra-prima. Verdadeiro "tour de force" de 552 versos, espécie de meditação sobre o ato criativo, o poema foi escrito a partir do quadro homônimo do pintor italiano Parmigianino (1503-1540) e batiza o livro de 1975 que levou os principais prêmios de poesia dos EUA, entre eles o Pulitzer.
Ashbery costuma ser rotulado como integrante da "Escola de Nova York", grupo de poetas que, nos anos 1950 e 60, tinha afinidades como o expressionismo abstrato, a poesia francesa, o surrealismo e a música de vanguarda.
"The Tennis Court Oath" (1962) teve grande influência entre os chamados "poetas da linguagem", um dos últimos movimentos de poesia experimental dos EUA.
Pode-se dizer que, como na obra de Proust e na filosofia de Bergson, a poética de Ashbery se propõe a ser uma investigação dos dados imediatos da sua consciência.
São marcantes, em sua prosódia, o uso da fala americana, fluidez contrastando com descontinuidade, constantes mudanças de tom e pronomes pessoais, uso da ironia e do pastiche.
Seus poemas são permanentes desafios ao leitor. Cabem neles desde citações eruditas e referências da alta cultura até fragmentos de conversas, alusões à cultura pop, ao cinema e aos desenhos animados –veja-se, por exemplo, "Patolino em Hollywood". Até o fim da vida esteve aberto a inovações.
Em 1992, entrevistei-o a pedido de uma revista do Arizona –uma versão do texto está em meu livro "Vozes & Visões" (Iluminuras, 1996).
Era uma tarde de muita neve no Chelsea, onde ele morava em Manhattan –desde 1979, ele e seu companheiro, David Kermani, dividiam seu tempo entre o apartamento e a casa onde morreu. A mesa à qual escrevia era impecável. As paredes, cheias de pinturas –uma de suas paixões, além da música e do cinema.
Os editores da revista me avisaram que ele era difícil de entrevistar, lacônico. O que encontrei foi um senhor de 65 anos simpático, falante e bem-humorado. Por duas horas, conversamos sobre sua obra, sobre a poesia e a cultura americanas, arte, música e processo criativo.
"Quero minha poesia o mais próximo de meus pensamentos imediatos", disse.
Quando lhe perguntei se gostava de jazz, acabou dando uma das chaves para sua poesia: "Nunca me interessei muito, e você deve achar estranho eu dizer isso, porque meus poemas são bastante improvisacionais, eles vão se construindo e se modificando enquanto prosseguem, como ocorre no jazz".
Ashbery ainda não teve uma coletânea de sua poesia traduzida no Brasil. É recomendável a leitura de "John Ashbery - Módulos para o Vento" (Edusp, 1999), no qual Viviana Bosi disseca e traduz seu poema mais famoso.
Autor de quase 30 livros de poemas, nos últimos anos ele vinha num ritmo frenético de publicações. Também lançou, em 2012, uma tradução das "Illuminations", de Arthur Rimbaud, um de seus poetas favoritos. Não levou o Nobel, mas merecia.
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