Experiências
Extraordinárias apresenta uma nova relação entre
os fenômenos midiáticos e a poesia
POR DANIEL ZANELLA
A poesia,
o ato de preencher a linguagem com significados, está para a interpretação do
mundo assim como a água está para a seca, exercício de resgate. Experiências
Extraordinárias, último livro do londrinense Rodrigo Garcia Lopes, é um caso
raro de clareza intelectual com rigor e método: precisão aliada a sentimento.
(Força na
aguadura, distanciamento do que é turvo.)
A obra é
dividida em quatro eixos bem amplos. Em “Idade Mídia”, os temas contemporâneos
são questionados na balança fumegante entre civilização e barbárie; “Satori
Uso” é uma compilação de haicais, também nome do heterônimo criado pelo poeta
na década de 1980; “Diálogos” é um passeio pelo percurso intelectual-artístico
do autor, com suas referências à mostra; e “Experiências Extraordinárias” é um
apanhado de poemas livres. Os núcleos quase extremos se conversam e denotam a
versatilidade de Garcia Lopes, também compositor, tradutor, editor e
jornalista.
A obra
foge do palavreado nebuloso, de uma certa alma trapaceira muito em voga na
poesia contemporânea – quando o autor deixa no leitor a desconfiança de que ou
escreveu algo muito genial ou foi apenas confuso, algo que realmente não
acontece aqui. “Querido pensamento,/ nunca fomos tão nós/ quando estivemos a
sós/ no instante de seu advento.” é dito em “Solilóquio”.
De modo
geral, a curvatura metodológica de Experiências Extraordinárias transita entre
a tradição literária – os mitos, a literatura oriental, França, as glórias do
mundo – e a elaboração de um tipo de leitura para o novo, quando o poeta se
coloca na condição de tradutor. Aqui, a cultura pop se apresenta num campo onde
o erudito não a anula. A primeira sequência de 14 poemas desvela isso; vozes
para entender o imediato:
Tempos de
Celebridade
Carlos, na
próxima encadernação
Nascerei
filho de alguém famoso.
E então,
como um cão raivoso,
Não
largarei meu precioso osso.
Quem disse
que é preciso ler,
Ter
talento? Não seja ridículo.
Esforço é
coisa de otário.
Meu
sobrenome será meu currículo.
Vou
escrever uns poemas fofos
Umas
cançõezinhas ordinárias
Com uma
certeza: o Brasil nunca saiu
Das
capitanias hereditárias.
Garcia
Lopes corre alguns riscos. Ao se aventurar em um terreno crítico/sonoro, ele
soa, em alguns momentos, quase como tribunal de redes sociais, principalmente
na sequência em que parodia formatos jornalísticos para autores clássicos. “DJ
Marcel Duchamp curte balada em Jurerê Internacional”, diz em um trecho de
Famosos (I). A busca por ser integrante de seu tempo também cobra seu preço,
que o autor não se nega a pagar.
Porém, a aplicação
conferida ao cotidiano, àquilo que está boiando na superfície em busca de
sentido poético e é recuperado, impede que a obra se perca no próprio fluxo de
acidez. Em “Guarujá Salem”: “linchada por um boato/ numa tarde de sábado/
mundo-barbárie// fabiane// ainda ergue a cabeça/ para um último olhar/ à
multidão de agressores// filmando com celulares/ e smartphones”.
Sem semear
espinhos, Experiências Extraordinárias ambiciona, sim, uma certa juventude
eterna, assentar-se como espírito de um tempo. Não é um livro pequeno,
individualizante, parido para ser mais. Em “Império dos Segundos”, há o
aprofundamento das noções contemporâneas de tempo, a fugacidade toda da matéria
que absorve os dias, o fluxo inesgotável, perene. (O poeta como um revelador,
transmissor e registrador dos pensamentos):
“Se eu
fosse parar pra saber/ o sabor deste instante/ não iria jamais perceber/ do que
é feito o durante,// a carne de cada segundo, / minuto de cada poente/ de que é
feito este mundo, / sangue, esperma, poeira,// não ia jamais me lembrar/ da
trama da tarde, museu/ onde moram as velhas horas,/ nem o duro rosto deste
outro// outono, matéria, mistério,/ nem a memória, esse mármore/ em fluxo,
rugido em estéreo/ de uma incessante cachoeira.”
A poesia
de Rodrigo Garcia Lopes é bela e funciona. Atravanca o caminho, mas
descongestiona. É o poeta como um cientista de sensações, em busca de responder
(com a cabeça e o coração) à fome absoluta dos dias.
Estante
Rodrigo
Garcia Lopes
Experiências
Extraordinárias
Kan
editora, 104 páginas, R$ 35
A obra
pode ser adquirida na livraria da Escola de Escrita, localizada na Rua
Riachuelo, 427, Centro, Curitiba ou pelo contato@escoladeescrita.com.br.
O autor
ministrará na Escola, a partir de março, a Oficina de Criação Poética, também
denominada Experiências Extraordinárias. As inscrições podem ser feitas aqui e
aqui.
Escape
para a leitura
_____
A história
da Lua
Ela, velha
lanterna chinesa
translúcida
(Cor de
crânio
quase a
explodir)
flutua – Lua:
Escudo de
batalha,
hóspede do
céu,
cesta de damas-da-noite:
Quantas
marcas de passado
em suas feridas, fissuras,
cicatrizes?
1969,
Armstrong te largou aí,
depois de pisar e pular
em suas crateras.
Até hoje
dizem
que tudo não
passou
de pura encenação.
Cientistas
se debatem
sobre o
mistério
de sua
composição
E ainda
assim, com essa cara
de máscara de Nô,
você nos olha.
Li Po te
esperou aquela noite
no Rio Amarelo.
Ele só queria abraçá-la.
Méliès
(1902) abusou
de sua inocência
em Le voyage de la lune
Enquanto
egípcios
a
tiveram, Chonsu,
em altíssima
conta.
Artemis,
Chandra, Jaci.
Deusa branca,
Senhora do Oriente,
A memória
colhe
outros nomes
em seu passeio noturno:
Bombardeada
pelo sol,
o que
fascina
é sua face
oculta:
Capuz de
velha bruxa,
perita
no disfarce
de suas fases.
Este o
nascer da Terra
visto de sua praia cinza e sem
mar,
onde som nenhum se propaga.
Estéril
concubina, espelho solar,
satélite inútil
suspenso no enigma.
Certa
noite de verão
Sokan
lhe pôs um cabo
e
tornou-a um esplêndido abano.
Lua que
desce à terra
e
se mistura
com o sonho dos homens.
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