sexta-feira, março 07, 2014

Canções do Estúdio Realidade no SESC Prainha/Floripa

Dia 9. Domingo. SESC Prainha / Florianópolis / 20 horas / Grátis

Rodrigo Garcia Lopes (voz, violão)
Neno Moura (bateria)


Para o público em geral, ávido de cultura, uma personalidade criativa e livre dessas por perto, nesta época de especializações, de nichos de mercado, de repetições e limitações, é motivo para comemorar.
VITOR RAMIL

No ótimo Canções do Estúdio Realidade, o poeta, compositor e tradutor visita a canção popular com desenvoltura, explorando as características específicas do gênero sem cair na armadilha de fazer mera poesia musicada.
ROGER LERINA, Zero Hora.

Este CD de Rodrigo Garcia Lopes, que carrega o sinuoso título de Canções do Estúdio Realidade, lembra sonhos de juventude, quimeras de uma possível aproximação com a poesia, com a divindade, com o vinho da existência, com a uva da metáfora sufi, a fonte. Como diria um zen budista: a imersão na realidade. Que coisa mais bem feita!
ARRIGO BARNABÉ

foto: Elisabete Ghisleni

segunda-feira, março 03, 2014

"Estúdio Realidade": Resenha de José Castello

 

José Castello

 /

Rodrigo, o desconfiado

Publicado em 02/03/2014 |
A chave para ler Estúdio Realidade, novo e desafiador livro de poemas de Rodrigo Garcia Lopes, talvez esteja em uma epígrafe tomada de empréstimo ao argentino Macedônio Fernández, que abre o poema “Em Aberto Mistério”. Diz Macedônio: “A realidade trabalha em aberto mistério”. Todo o livro de Rodrigo é uma interrogação a respeito da realidade, vista — como assinala Antonio Cícero na apresentação — “como um estúdio”. Lembra-nos Cícero: “Um estúdio consiste numa unidade de produção em que um filme, um disco, um DVD, um game etc, é realizado”. Também a realidade não é algo dado, mas fruto de uma fabricação. É arbitrária, é inventada e é artifício.
     A realidade vista como um laboratório, contra a qual a poesia se levanta. “Talvez poemas devessem ser mais que simplesmente escrita sobre experiências, e sim escrita como experiências”, escreve Rodrigo em um dos 24 fortes aforismos com que fecha seu livro. Uma poesia, portanto, que não se empenhe em refletir a realidade, mas, ao contrário, em produzir contrarrealidades, que a ela se oponham para desmascarar sua alma artificial. Em outro aforismo, comparando a poesia com a prosa, o poeta nos diz: “A prosa parece se traduzir em ser vidro transparente, enquanto a poesia revela manchas de mão no vidro, trincas, poeira, as imperfeições da superfície”. A realidade quer ser impecável, funcional, prática. A poesia, ao contrário, busca as fendas, falhas e fragilidades que a constituem. Sai à procura da imperfeição.
     A realidade é, antes de tudo, cópia, efeito e séries produtivas. “O dia é um plágio”, Rodrigo escreve. O poeta não se interessa pelas regras, modelos, vantagens, aplicações. Investe, em vez disso, nas sombras do real — e a palavra “sombra” percorre, de ponta a ponta, o livro de Rodrigo. Nossa época, hiper-realista, caracteriza-se, justamente, por um excesso de realidade. “Inauguramos outra época,/ De espelhismos, superfícies./ Tautologias. Isto é isto./ Não de batalhas ganhas,/ mas de chamadas perdidas”. Em contrapartida, ele nos apresenta uma ética para o poeta: “Mas uma mente nunca se entrega”. A realidade é uma espécie de prisão de luxo: confortável, prática, produtiva, ela retém, no entanto, aqueles aspectos frágeis do humano por que só um poeta se interessa. Além da realidade, a natureza — que é desordem, caos e arbítrio — resiste. “Alguém se esqueceu de desligar/ a máquina do mar”, diz.
      A realidade, o poeta nos sugere, é na verdade o lugar da desconfiança. Aquele lugar que “trabalha em aberto mistério” (Fernández) e cujas chaves se perderam para sempre. Escreve Rodrigo, o desconfiado: “Nem tudo tem sido, como se tem ouvido,/ a mesma coisa desde o começo/ dos tempos. Não estou convencido./ Se há algo que não muda, desconheço”. Lamenta-se em outro poema: “Mentiras, mentiras./ O mundo é um parque de mentiras”. A função da poesia seria, assim, a de desmascaramento. Puxar o lenço que encobre o rosto da realidade e que lhe dá feições perfeitas. Penetrar na grande turbulência que sob ele se esconde. A realidade, ele nos diz, é como um sono. Pensar é o mesmo que acordar. Só que o poeta não pensa com citações de cartilhas e manuais de instrução, mas inventando os seus próprios guias.
      Como crer em ideias comuns como as do presente e do agora? “E é quase tarde para ser agora”, Rodrigo nos adverte, sugerindo o quanto são falhos e precários nossos mecanismos de controle do tempo. Mais que produtora de sentido — algo que ajude a explicar a realidade —, a poesia produz uma música que a envolve e a suporta. “Estar dentro da música,/ Passagem onde se quer ficar”. A ideia da passagem aqui é muito importante: como já disse o filósofo, a poesia é um caminho que não leva a parte alguma. Portanto, só leva a si mesmo. “Meu lugar é onde não estou”, conclui Rodrigo, enfatizando a escrita poética como um não lugar. Apenas um espaço “entre”. Território escorregadio, que coloca em xeque os lugares sólidos e implacáveis de nossa realidade humana. Ao poeta, resta a fugacidade do agora. Diz: “O agora conquistado/ e perdido nas dobras do instante”. Resta um fio, que não sabe de onde vem, e tampouco aonde o levará. Uma dobra, zona obscura: uma sombra mais uma vez.
      O poeta se apega, assim, à fúria do instante, que é sempre inquieto e indefinido. Ele nos diz em um brevíssimo texto em prosa: “Objetivo: captar a luz antes de virar azul, sentido antes de virar destino, miosótis da íris, foto transfigurada que se revela no instante de seu clique”. A poesia persegue o breve instante, enquanto a realidade se alimenta dos grandes segmentos e das grandes certezas. “A poesia é uma/ estratégia de super-/ vivência”, ele resume. Viver além das condições padronizadas da vida, saltar à frente — ou que seja para trás, rumo às origens —, mas nunca aceitar aquilo que é dado.
Vista como Rodrigo nos propõe, a poesia não é para qualquer um: exige esforço, liberdade interior, coragem. Antes de ser um objeto, é algo que o homem traz dentro de si, ou não. “Se você é incapaz de ouvi-la, e se/ Juntas não formarem acordes deve ser/ Porque não a traz dentro de você”. Exige disponibilidade interior para pensar além do pensamento e habitar além do mundo banal. Afirma-se aqui seu caráter nômade. “Língua, estranha viagem/ por paraísos perdidos, esperamos/ Sendas, cantilenas/ de templos escondidos”. O poeta, em consequência, não tem um lar — ou poeta não é. O poeta é um viajante, que desconhece o sentido de sua aventura e faz da própria aventura seu sentido. Assim descreve sua peregrinação: “Entro no centro secreto/ onde a máquina Enigma secreta/ vozes/ em línguas desconhecidas,/ Saliva negra da escrita,/ Cifras quase mudas”. Versos em que reconhece a grande proximidade existente entre poesia e silêncio.
     A poesia, portanto, não é um objeto, mas um processo e uma experiência. Está no vigésimo aforismo: “Produto e processo, num poema têm que ser pensados juntos. O que e como são siameses. Esmero excessivo desvirtua o palácio da sabedoria”. O poema não é um lugar plácido e confortável a que se chega para, enfim, gozar da serenidade. “O poema nasce enquanto o procuramos”.