José Castello
Rodrigo, o desconfiado
Publicado em 02/03/2014 | josegcastello@gmail.com
A chave para ler Estúdio Realidade, novo e desafiador livro de
poemas de Rodrigo Garcia Lopes, talvez esteja em uma epígrafe tomada de
empréstimo ao argentino Macedônio Fernández, que abre o poema “Em Aberto
Mistério”. Diz Macedônio: “A realidade trabalha em aberto mistério”.
Todo o livro de Rodrigo é uma interrogação a respeito da realidade,
vista — como assinala Antonio Cícero na apresentação — “como um
estúdio”. Lembra-nos Cícero: “Um estúdio consiste numa unidade de
produção em que um filme, um disco, um DVD, um game etc, é realizado”.
Também a realidade não é algo dado, mas fruto de uma fabricação. É
arbitrária, é inventada e é artifício.
A realidade vista como um
laboratório, contra a qual a poesia se levanta. “Talvez poemas devessem
ser mais que simplesmente escrita sobre experiências, e sim escrita como
experiências”, escreve Rodrigo em um dos 24 fortes aforismos com que
fecha seu livro. Uma poesia, portanto, que não se empenhe em refletir a
realidade, mas, ao contrário, em produzir contrarrealidades, que a ela
se oponham para desmascarar sua alma artificial. Em outro aforismo,
comparando a poesia com a prosa, o poeta nos diz: “A prosa parece se
traduzir em ser vidro transparente, enquanto a poesia revela manchas de
mão no vidro, trincas, poeira, as imperfeições da superfície”. A
realidade quer ser impecável, funcional, prática. A poesia, ao
contrário, busca as fendas, falhas e fragilidades que a constituem. Sai à
procura da imperfeição.
A realidade é, antes de tudo, cópia, efeito e séries
produtivas. “O dia é um plágio”, Rodrigo escreve. O poeta não se
interessa pelas regras, modelos, vantagens, aplicações. Investe, em vez
disso, nas sombras do real — e a palavra “sombra” percorre, de ponta a
ponta, o livro de Rodrigo. Nossa época, hiper-realista, caracteriza-se,
justamente, por um excesso de realidade. “Inauguramos outra época,/ De
espelhismos, superfícies./ Tautologias. Isto é isto./ Não de batalhas
ganhas,/ mas de chamadas perdidas”. Em contrapartida, ele nos apresenta
uma ética para o poeta: “Mas uma mente nunca se entrega”. A realidade é
uma espécie de prisão de luxo: confortável, prática, produtiva, ela
retém, no entanto, aqueles aspectos frágeis do humano por que só um
poeta se interessa. Além da realidade, a natureza — que é desordem, caos
e arbítrio — resiste. “Alguém se esqueceu de desligar/ a máquina do
mar”, diz.
A realidade, o poeta nos sugere, é na verdade o lugar da
desconfiança. Aquele lugar que “trabalha em aberto mistério” (Fernández)
e cujas chaves se perderam para sempre. Escreve Rodrigo, o desconfiado:
“Nem tudo tem sido, como se tem ouvido,/ a mesma coisa desde o começo/
dos tempos. Não estou convencido./ Se há algo que não muda, desconheço”.
Lamenta-se em outro poema: “Mentiras, mentiras./ O mundo é um parque de
mentiras”. A função da poesia seria, assim, a de desmascaramento. Puxar
o lenço que encobre o rosto da realidade e que lhe dá feições
perfeitas. Penetrar na grande turbulência que sob ele se esconde. A
realidade, ele nos diz, é como um sono. Pensar é o mesmo que acordar. Só
que o poeta não pensa com citações de cartilhas e manuais de instrução,
mas inventando os seus próprios guias.
Como crer em ideias comuns como as do presente e do agora? “E é quase
tarde para ser agora”, Rodrigo nos adverte, sugerindo o quanto são
falhos e precários nossos mecanismos de controle do tempo. Mais que
produtora de sentido — algo que ajude a explicar a realidade —, a poesia
produz uma música que a envolve e a suporta. “Estar dentro da música,/
Passagem onde se quer ficar”. A ideia da passagem aqui é muito
importante: como já disse o filósofo, a poesia é um caminho que não leva
a parte alguma. Portanto, só leva a si mesmo. “Meu lugar é onde não
estou”, conclui Rodrigo, enfatizando a escrita poética como um não
lugar. Apenas um espaço “entre”. Território escorregadio, que coloca em
xeque os lugares sólidos e implacáveis de nossa realidade humana. Ao
poeta, resta a fugacidade do agora. Diz: “O agora conquistado/ e perdido
nas dobras do instante”. Resta um fio, que não sabe de onde vem, e
tampouco aonde o levará. Uma dobra, zona obscura: uma sombra mais uma
vez.
O poeta se apega, assim, à fúria do instante, que é sempre inquieto e
indefinido. Ele nos diz em um brevíssimo texto em prosa: “Objetivo:
captar a luz antes de virar azul, sentido antes de virar destino,
miosótis da íris, foto transfigurada que se revela no instante de seu
clique”. A poesia persegue o breve instante, enquanto a realidade se
alimenta dos grandes segmentos e das grandes certezas. “A poesia é uma/
estratégia de super-/ vivência”, ele resume. Viver além das condições
padronizadas da vida, saltar à frente — ou que seja para trás, rumo às
origens —, mas nunca aceitar aquilo que é dado.
Vista como Rodrigo nos propõe, a poesia não é para qualquer um: exige
esforço, liberdade interior, coragem. Antes de ser um objeto, é algo
que o homem traz dentro de si, ou não. “Se você é incapaz de ouvi-la, e
se/ Juntas não formarem acordes deve ser/ Porque não a traz dentro de
você”. Exige disponibilidade interior para pensar além do pensamento e
habitar além do mundo banal. Afirma-se aqui seu caráter nômade. “Língua,
estranha viagem/ por paraísos perdidos, esperamos/ Sendas, cantilenas/
de templos escondidos”. O poeta, em consequência, não tem um lar — ou
poeta não é. O poeta é um viajante, que desconhece o sentido de sua
aventura e faz da própria aventura seu sentido. Assim descreve sua
peregrinação: “Entro no centro secreto/ onde a máquina Enigma secreta/
vozes/ em línguas desconhecidas,/ Saliva negra da escrita,/ Cifras quase
mudas”. Versos em que reconhece a grande proximidade existente entre
poesia e silêncio.
A poesia, portanto, não é um objeto, mas um processo e uma
experiência. Está no vigésimo aforismo: “Produto e processo, num poema
têm que ser pensados juntos. O que e como são siameses. Esmero excessivo
desvirtua o palácio da sabedoria”. O poema não é um lugar plácido e
confortável a que se chega para, enfim, gozar da serenidade. “O poema
nasce enquanto o procuramos”.
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