segunda-feira, março 03, 2014

"Estúdio Realidade": Resenha de José Castello

 

José Castello

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Rodrigo, o desconfiado

Publicado em 02/03/2014 |
A chave para ler Estúdio Realidade, novo e desafiador livro de poemas de Rodrigo Garcia Lopes, talvez esteja em uma epígrafe tomada de empréstimo ao argentino Macedônio Fernández, que abre o poema “Em Aberto Mistério”. Diz Macedônio: “A realidade trabalha em aberto mistério”. Todo o livro de Rodrigo é uma interrogação a respeito da realidade, vista — como assinala Antonio Cícero na apresentação — “como um estúdio”. Lembra-nos Cícero: “Um estúdio consiste numa unidade de produção em que um filme, um disco, um DVD, um game etc, é realizado”. Também a realidade não é algo dado, mas fruto de uma fabricação. É arbitrária, é inventada e é artifício.
     A realidade vista como um laboratório, contra a qual a poesia se levanta. “Talvez poemas devessem ser mais que simplesmente escrita sobre experiências, e sim escrita como experiências”, escreve Rodrigo em um dos 24 fortes aforismos com que fecha seu livro. Uma poesia, portanto, que não se empenhe em refletir a realidade, mas, ao contrário, em produzir contrarrealidades, que a ela se oponham para desmascarar sua alma artificial. Em outro aforismo, comparando a poesia com a prosa, o poeta nos diz: “A prosa parece se traduzir em ser vidro transparente, enquanto a poesia revela manchas de mão no vidro, trincas, poeira, as imperfeições da superfície”. A realidade quer ser impecável, funcional, prática. A poesia, ao contrário, busca as fendas, falhas e fragilidades que a constituem. Sai à procura da imperfeição.
     A realidade é, antes de tudo, cópia, efeito e séries produtivas. “O dia é um plágio”, Rodrigo escreve. O poeta não se interessa pelas regras, modelos, vantagens, aplicações. Investe, em vez disso, nas sombras do real — e a palavra “sombra” percorre, de ponta a ponta, o livro de Rodrigo. Nossa época, hiper-realista, caracteriza-se, justamente, por um excesso de realidade. “Inauguramos outra época,/ De espelhismos, superfícies./ Tautologias. Isto é isto./ Não de batalhas ganhas,/ mas de chamadas perdidas”. Em contrapartida, ele nos apresenta uma ética para o poeta: “Mas uma mente nunca se entrega”. A realidade é uma espécie de prisão de luxo: confortável, prática, produtiva, ela retém, no entanto, aqueles aspectos frágeis do humano por que só um poeta se interessa. Além da realidade, a natureza — que é desordem, caos e arbítrio — resiste. “Alguém se esqueceu de desligar/ a máquina do mar”, diz.
      A realidade, o poeta nos sugere, é na verdade o lugar da desconfiança. Aquele lugar que “trabalha em aberto mistério” (Fernández) e cujas chaves se perderam para sempre. Escreve Rodrigo, o desconfiado: “Nem tudo tem sido, como se tem ouvido,/ a mesma coisa desde o começo/ dos tempos. Não estou convencido./ Se há algo que não muda, desconheço”. Lamenta-se em outro poema: “Mentiras, mentiras./ O mundo é um parque de mentiras”. A função da poesia seria, assim, a de desmascaramento. Puxar o lenço que encobre o rosto da realidade e que lhe dá feições perfeitas. Penetrar na grande turbulência que sob ele se esconde. A realidade, ele nos diz, é como um sono. Pensar é o mesmo que acordar. Só que o poeta não pensa com citações de cartilhas e manuais de instrução, mas inventando os seus próprios guias.
      Como crer em ideias comuns como as do presente e do agora? “E é quase tarde para ser agora”, Rodrigo nos adverte, sugerindo o quanto são falhos e precários nossos mecanismos de controle do tempo. Mais que produtora de sentido — algo que ajude a explicar a realidade —, a poesia produz uma música que a envolve e a suporta. “Estar dentro da música,/ Passagem onde se quer ficar”. A ideia da passagem aqui é muito importante: como já disse o filósofo, a poesia é um caminho que não leva a parte alguma. Portanto, só leva a si mesmo. “Meu lugar é onde não estou”, conclui Rodrigo, enfatizando a escrita poética como um não lugar. Apenas um espaço “entre”. Território escorregadio, que coloca em xeque os lugares sólidos e implacáveis de nossa realidade humana. Ao poeta, resta a fugacidade do agora. Diz: “O agora conquistado/ e perdido nas dobras do instante”. Resta um fio, que não sabe de onde vem, e tampouco aonde o levará. Uma dobra, zona obscura: uma sombra mais uma vez.
      O poeta se apega, assim, à fúria do instante, que é sempre inquieto e indefinido. Ele nos diz em um brevíssimo texto em prosa: “Objetivo: captar a luz antes de virar azul, sentido antes de virar destino, miosótis da íris, foto transfigurada que se revela no instante de seu clique”. A poesia persegue o breve instante, enquanto a realidade se alimenta dos grandes segmentos e das grandes certezas. “A poesia é uma/ estratégia de super-/ vivência”, ele resume. Viver além das condições padronizadas da vida, saltar à frente — ou que seja para trás, rumo às origens —, mas nunca aceitar aquilo que é dado.
Vista como Rodrigo nos propõe, a poesia não é para qualquer um: exige esforço, liberdade interior, coragem. Antes de ser um objeto, é algo que o homem traz dentro de si, ou não. “Se você é incapaz de ouvi-la, e se/ Juntas não formarem acordes deve ser/ Porque não a traz dentro de você”. Exige disponibilidade interior para pensar além do pensamento e habitar além do mundo banal. Afirma-se aqui seu caráter nômade. “Língua, estranha viagem/ por paraísos perdidos, esperamos/ Sendas, cantilenas/ de templos escondidos”. O poeta, em consequência, não tem um lar — ou poeta não é. O poeta é um viajante, que desconhece o sentido de sua aventura e faz da própria aventura seu sentido. Assim descreve sua peregrinação: “Entro no centro secreto/ onde a máquina Enigma secreta/ vozes/ em línguas desconhecidas,/ Saliva negra da escrita,/ Cifras quase mudas”. Versos em que reconhece a grande proximidade existente entre poesia e silêncio.
     A poesia, portanto, não é um objeto, mas um processo e uma experiência. Está no vigésimo aforismo: “Produto e processo, num poema têm que ser pensados juntos. O que e como são siameses. Esmero excessivo desvirtua o palácio da sabedoria”. O poema não é um lugar plácido e confortável a que se chega para, enfim, gozar da serenidade. “O poema nasce enquanto o procuramos”.

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