Uma Paixão pelos Livros
Rodrigo Garcia Lopes e Maurício
Arruda Mendonça
Nenhuma manhã mais cinza do que esta
sobre o lago de Lucerna. Estou no deque de um café, e escrevo neste diário de
capa florida que acabo de comprar. Pena. Em poucos minutos toda a beleza dos
Alpes se apagará de meus olhos. Acabei de ingerir a última cápsula. Mesmo
assim, aspirando o ar dessas montanhas cujos topos são páginas em branco
gigantescas, estou em paz com minha consciência e meu sangue.
Mal posso crer que há dois dias
estava em São Paulo, fugindo para o aeroporto internacional de Guarulhos. Mal posso crer que acertei contas com um
senhor chamado Jayme de León. Agora todos sabem que, por trás da máscara de
bibliófilo e benemérito, se escondia um homem vil, ambicioso e capaz de matar
para atingir seu objetivo: formar a maior coleção particular de livros raros da
América Latina. Agora que minha hora se aproxima, quero registrar neste diário
a verdade de como tudo aconteceu.
1.
Fui uma
menina cercada por uma floresta de livros. Olhando para o alto, estantes eram
montanhas de papel que ameaçavam degelar a qualquer instante. Quase não via
minha mãe. Ela vivia trancada no quarto de sua melancolia. Meu jovem pai,
Giorgos Xenakis, era um amante dos livros e um dos maiores colecionadores do
Brasil. Depois do divórcio de meus pais, nossa biblioteca encheu-se de luz.
Filha única, meus dias eram povoados por histórias fantásticas e personagens
enigmáticos. Eu e papai vivíamos solitários num mundo a parte. Organizávamos os
livros interminavelmente, numa tranquila rotina quebrada apenas pela visita dos
compradores. Era uma legião. Eu os odiava.
O
senhor Jayme de León era um dos mais assíduos frequentadores de nossa casa no
Jardim Europa. Meu pai o admirava. Não raras vezes eu os flagrava conversando
sobre livros e mulheres. Recordo-me bem de sua figura esguia, seus olhos
azul-Van Gogh devorando cada centímetro de meu corpo em flor. Como tudo
aconteceu? Eu tinha apenas 13 anos. Numa noite de maio de 1990, o senhor de León
veio à nossa mansão para tentar convencer papai – mais uma vez – a vender-lhe
os 12 volumes de As Mil e Uma Noites, na
célebre tradução de Antoine Galland, publicados entre 1704 e 1717.
Eu
estava em meu quarto no andar superior. Ouvi vozes ríspidas e tive medo. De
repente, silêncio. Chamei por meu pai. Não houve resposta. Então o o encontrei
caído com a cabeça arrebentada sobre uma poça de sangue. Na porta que dava para
a rua, vi o olhar atônito que Jayme de León me lançou antes de fugir. Numa das
estantes, um vazio. A coleção de Galland havia sido roubada. Mas o que o
criminoso não sabia era que Giorgos havia esquecido em meu quarto, quanto veio
ler para mim na cama, o último tomo de As
Mil e Uma Noites. O mesmo que apertei contra meu peito quando ouvi os
gritos de horror.
A dor e o choque da perda de meu pai
provocaram lacunas em minha memória. A família me enviou para um colégio
interno na Suíça. Mais tarde, já mulher feita, voltei para o Rio e me
especializei em restauração de livros na Biblioteca Nacional. Três anos depois,
quando já era uma profissional destacada em minha área, recebi um convite
irrecusável: o de trabalhar na restauração de um importante arquivo particular
em São Paulo. O Instituto ***, um dos acervos particulares mais fascinantes do
país, era um caixote cinza na Rua Monte Alegre, próximo da casa onde morou o
poeta Haroldo de Campos. Por fora, face austera. Por dentro, o luxo de um
palácio demonstrava a riqueza de seu proprietário. O salário era bom. Nossa
equipe era formada por seis mulheres.
No
Instituto *** ocupávamos mesas compridas e trabalhávamos com nossos jalecos e
luvas brancas. Nos dias iniciais me extasiei com primeiras edições que fariam a
alegria de qualquer alfarrabista. A grande biblioteca era composta de vinte mil
títulos. Edições raras de Hans Staden, Jean de Léry, Machado de Assis,
Guimarães Rosa e incontáveis manuscritos. Nas horas do café nos perguntávamos
quando, afinal, o rico colecionador apareceria para avaliar nosso trabalho.
Certa
tarde de inverno, eu preparava os livros do século 17 que iriam seguir para um
leilão da Sothebys, quando uma colega chamou-me a atenção para uma descoberta
que fizera ao resgatar os livros de uma estante
que havia caído. Senti uma fria onda de arrepios quando meus olhos se depararam
com a familiar lombada azul puída de As
Mil e Uma Noites, de Galland. Uma coleção que valeria, segundo minha
colega, um milhão de dólares. Valeria, não fosse por um detalhe, ela disse: a
ausência do último volume. Abri um dos livros e corri meus dedos à página 13,
onde senti, no canto inferior esquerdo, as letras G e X em alto relevo. Senti
uma forte náusea. Foi assim que me vi dentro da biblioteca roubada de Jayme de León.
Foi assim que me deparei com a coleção que havia sido arrancada de meu pai, na
última página de sua vida.
2.
Fomos surpreendidas num final de tarde
com a chegada de León ao Instituto ***. Os leilões europeus haviam sido
lucrativos, sobretudo a venda dos manuscritos de Stephen Zweig conseguidos
juntos à coleção do uruguaio Dubuffet. De León queria cumprimentar sua nova
equipe. Logo no primeiro encontro seus olhos azuis folhearam meu rosto, meus
cabelos cautelosamente tingidos de negro. Convidou a todas para uma ceia. Uma
vez no restaurante, evitei seus olhos colocando meus óculos de grau. Em nenhum
momento ele suspeitou de mim. Eu já havia mudado meu sobrenome legalmente para
Brand, da parte de minha mãe suíça.
Pouco tempo depois, ele me convidou para jantar sozinha num restaurante
grego. Aos sessenta anos, de León ainda era um homem atraente. Limitei ao
máximo informações sobre minha vida particular e meu passado. Durante nossas
conversas, tal qual uma Sherazade, eu deleitava o colecionador com minhas
histórias e conhecimentos sobre livros antigos e o mercado livreiro, minha
facilidade com línguas. Ele passou a me visitar todas as tardes no Instituto
***. No décimo-primeiro encontro, Jayme confessou que estava louco por mim.
3.
Foi então
que iniciei a segunda parte de meu plano. Apagar da existência o senhor Jayme
de León, página por página.
Não
contarei como, anonimamente, destruí seu casamento em poucos meses, enviando
fotos dele com todas as garotas do Instituto ***, inclusive eu mesma; não
contarei como, em sua embriaguez, o fiz confessar seus muitos crimes e os
gravei como prova e enviei à polícia. Não contarei como ele teve de se desfazer
de seus livros mais valiosos para pagar a divisão dos bens, dívidas e
advogados. Apenas contarei que, numa noite, eu o levei ao mais escuro dos
corredores de sua biblioteca.
Foi
fácil. Atraí sua cobiça contando que ele possuía um último tesouro que poderia
salvar o Instituto ***. Sua salvação estava bem ali, ao alcance de suas mãos.
Foi assim que esperei que ele ficasse exatamente onde eu queria, diante da
gigantesca muralha de livros que ficava no fim do corredor. De León, agora pálida
sombra decadente, me perguntou o motivo de tanto mistério. Eu me virei e
apontei para uma antiga coleção. Ele deu um sorriso, reconhecendo os volumes de
As Mil e Uma Noites, acariciou as
lombadas, balançando a cabeça. Comentou que, por faltar o último volume, aquilo
lhe custara uma bagatela. Quando seus olhos se voltaram
para mim, empalideceram ao verem surgir, em minha mão trêmula, o último volume
perdido de sua coleção. Então lhe revelei quem eu era. Sua face crispou.
E
a última coisa de que me lembro, antes de entrar naquele avião, são os sons
horríveis de seus ossos sendo esmagados por uma avalanche de centenas de
volumes.
* * *
Redijo estas linhas porque sei que
ninguém acreditará em minha história. Os jornais brasileiros mataram minha
reputação, dizendo que eu seria a assassina de meu próprio pai, e que o crime
teria sido testemunhado pelo livreiro Jayme de León há exatos vinte anos. Isto
é completamente inverídico. Eu, Sonya Xenakis, amava meu pai.
Rodrigo Garcia Lopes, tradutor, músico, autor de Nômada, visibilia, entre outros 12 títulos. Maurício Arruda Mendonça, poeta e dramaturgo.