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Revista CULT:
Poesia, doa a quem doer: uma leitura de ‘O enigma das ondas’, de Rodrigo Garcia Lopes
1.
Diana
Junkes
O enigma das ondas,
de Rodrigo Garcia Lopes, recém-publicado pela Iluminuras, traz ao
leitor um convite corajoso, o da existência e persistência da poesia em tempos
tão sombrios. Mais que isso, sem deixar de doer, sangrar e denunciar as mazelas
que nos assolam no tempo presente e mesmo as históricas, há uma profunda
reflexão sobre o tempo, sobre o amor e o silêncio, perpassando a obra, ocultos
nas ondas, em seus ouvidos invisíveis que nos ouvem há milênios, e nos devolvem
em seu murmurejo constante, a nós mesmos, mas que um sentido, os sentidos, a
visão, o olfato, o paladar, o tato e, claro, a audição, a voz. É o que sugere o
poema que encerra o livro e dá título a ele, “Enigma das ondas”:
[…]
Sei que as ondas nos escutam (falando,
sozinhos nas praias, cegos a seus acenos)
há milhares e milhares de anos
com uma paciência que não temos.
Sei que sob a lua, exaustas, confessam,
quando recuam, mudas, em poças,
e cumprem sua líquida promessa:
A língua que falam é a nossa.
Essa língua falada e ao mesmo tempo inaudível aos
ouvidos insensíveis não é outra senão a própria lalangue,
que como ensina Haroldo de Campos em O afreudisíaco Lacan na galáxia de lalíngua, é a língua do inconsciente tensionada em função
poética, materialidade pura feita de palavras que performam a si mesmas, ainda
quando o poeta as renega para encontrar sabiamente o amparo solidário do
silêncio. Solidão e silêncio são companheiros inseparáveis em muitos dos versos
de Garcia Lopes. Mas engana-se quem espera dessa conjunção entreguismo ou
tristeza. Solidão e silêncio são parte da subjetividade poética, constituem-na
e por ela são constituídos, engendram versos, orquestram enjambements. Talvez
arriscasse dizer que entre tantos, aí está um leitmotiv caro ao livro todo.
O enigma das ondas,
diz Vitor Ramil, na quarta capa, “nos leva a realizar o melhor aéreo reverso da
sensibilidade”. E é disso que se trata também quando se fala da coragem. Em um
mundo mesquinho e pautado pelas mentiras, mais ainda do que pelo que talvez se
chama “pós-verdade”, a que um poema do livro se refere, a sensibilidade deve
nos manter vivos, atentos, destemidos. Não sentir não é uma opção. Isso nos
ensina O enigma das ondas,
mais que um aprendizado da experiência, é um aprendizado da escuta, da partilha
e da interrogação da experiência, seja pela via mais lírica, seja pela via do
humor ou da ironia, expedientes que o poeta maneja com maestria. Diz Silviano Santiago na apresentação que “A
página em branco é uma onda vivaz e espumosa, a caminho do túnel”; e o túnel
somos nós, leitores, por onde a palavra penetra sutilmente, abruptamente, sob o
murmúrio das ondas ou dos vagalhões. É também a poesia, seu acesso, seu exílio
em si ao mesmo tempo que arraigada na história, na memória e nas utopias, na
“Vontade de crer”:
[…]
Acabou a caneta, o vinho tinto.
O esplendor será secreto.
O espelho nunca esteve tão sozinho.
Mas tudo vai dar certo.
Aqui, a vontade de crer se afirma em “tudo vai dar
certo”, à primeira vista, mesmo considerando certo acento irônico; as rimas
toantes e, claro, o equilíbrio que engendram rimas nas últimas palavras dos
versos, ainda sonham com um mundo apolíneo, não pela ordem e pela perfeição, as
rimas toantes são imperfeitas, mas um mundo em que o diálogo prevaleça – as
rimas toantes são a figurativização do diálogo no poema, pois em sua diferença,
harmonizam. E já nos ensinou Walter Benjamin, em A crítica da violência que onde há entendimento, não há crueldade. As
rimas toantes, neste poema, mostram que a diferença é também o laço, o lastro
que reitera que tudo vai dar certo, são por assim dizer, o próprio
entendimento.
Nas quatro seções do livro, a saber, língua, pandemonium, mentis, loci a sensibilidade provoca fraturas e suturas,
um mergulho sob as ondas imensas do insondável, da crueza e da vileza, mas
também do amor, e esse me parece um aspecto que merece ser elucidados, já que a
crítica – bastante volumosa, para um livro que acaba de nascer – vem
apontando outras praias para a leitura. Vou, portanto, neste exíguo espaço da
coluna, ater-me a um poema em que esse tema salta aos olhos.
Rimas pobres
Dar
o que ninguém quer
Querer
o que não se pode dar
Amar
doa a quem doer
A pobreza das rimas reverbera no jogo de
contradições entre as estrofes, não por acaso, dísticos. É assim que o
sujeito lírico articula o grande desencontro do amor, pelo encontro dos versos,
pela valsa dos versos. Uma equação, a do amor, para a qual não há solução a não
ser amar, a despeito de tudo, “doa a quem doer”. De algum modo, e extrapolando
os sentidos para além do poema, ou seja, refletindo a partir do que ele convida
a fazer, a poesia talvez coubesse nessas “rimas pobres”, de certo modo ela é o
que ninguém quer, como acesso ao sentido e não como sentido em si, não oferece
pausas ou refrescos, é um ponto de impossível ao mesmo tempo que abre tantas
possibilidades. Em um mundo cinza, agreste, de tanta incompreensão, o enigma é
a poesia em si, sua força, seu poder de revolver entranhas, mudar o curso das
marés, doa a quem doer.
DIANA JUNKES é
poeta, crítica literária e professora da UFSCar. Escreve mensalmente a coluna
“Musa militante”.
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