terça-feira, outubro 06, 2020

Revista CULT: resenha de ‘O enigma das ondas’, de Rodrigo Garcia Lopes, por Diana Junkes

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Revista CULT:


Poesia, doa a quem doer: uma leitura de ‘O enigma das ondas’, de Rodrigo Garcia Lopes

1.        https://revistacult.uol.com.br/home/wp-content/uploads/2020/07/diana_ponte_neuf.jpgDiana Junkes


 

O enigma das ondas, de Rodrigo Garcia Lopes, recém-publicado pela Iluminuras, traz ao leitor um convite corajoso, o da existência e persistência da poesia em tempos tão sombrios. Mais que isso, sem deixar de doer, sangrar e denunciar as mazelas que nos assolam no tempo presente e mesmo as históricas, há uma profunda reflexão sobre o tempo, sobre o amor e o silêncio, perpassando a obra, ocultos nas ondas, em seus ouvidos invisíveis que nos ouvem há milênios, e nos devolvem em seu murmurejo constante, a nós mesmos, mas que um sentido, os sentidos, a visão, o olfato, o paladar, o tato e, claro, a audição, a voz. É o que sugere o poema que encerra o livro e dá título a ele, “Enigma das ondas”:

 

[…]
Sei que as ondas nos escutam (falando,
sozinhos nas praias, cegos a seus acenos)
há milhares e milhares de anos
com uma paciência que não temos.

Sei que sob a lua, exaustas, confessam,
quando recuam, mudas, em poças,
e cumprem sua líquida promessa:
A língua que falam é a nossa.

 

Essa língua falada e ao mesmo tempo inaudível aos ouvidos insensíveis não é outra senão a própria lalangue, que como ensina Haroldo de Campos em O afreudisíaco Lacan na galáxia de lalíngua, é a língua do inconsciente tensionada em função poética, materialidade pura feita de palavras que performam a si mesmas, ainda quando o poeta as renega para encontrar sabiamente o amparo solidário do silêncio. Solidão e silêncio são companheiros inseparáveis em muitos dos versos de Garcia Lopes. Mas engana-se quem espera dessa conjunção entreguismo ou tristeza. Solidão e silêncio são parte da subjetividade poética, constituem-na e por ela são constituídos, engendram versos, orquestram enjambements. Talvez arriscasse dizer que entre tantos, aí está um leitmotiv caro ao livro todo.

O enigma das ondas, diz Vitor Ramil, na quarta capa, “nos leva a realizar o melhor aéreo reverso da sensibilidade”. E é disso que se trata também quando se fala da coragem. Em um mundo mesquinho e pautado pelas mentiras, mais ainda do que pelo que talvez se chama “pós-verdade”, a que um poema do livro se refere, a sensibilidade deve nos manter vivos, atentos, destemidos. Não sentir não é uma opção. Isso nos ensina O enigma das ondas, mais que um aprendizado da experiência, é um aprendizado da escuta, da partilha e da interrogação da experiência, seja pela via mais lírica, seja pela via do humor ou da ironia, expedientes que o poeta maneja com maestria. Diz Silviano Santiago na apresentação que “A página em branco é uma onda vivaz e espumosa, a caminho do túnel”; e o túnel somos nós, leitores, por onde a palavra penetra sutilmente, abruptamente, sob o murmúrio das ondas ou dos vagalhões. É também a poesia, seu acesso, seu exílio em si ao mesmo tempo que arraigada na história, na memória e nas utopias, na “Vontade de crer”:

 

[…]

Acabou a caneta, o vinho tinto.
O esplendor será secreto.
O espelho nunca esteve tão sozinho.

Mas tudo vai dar certo.

 

Aqui, a vontade de crer se afirma em “tudo vai dar certo”, à primeira vista, mesmo considerando certo acento irônico; as rimas toantes e, claro, o equilíbrio que engendram rimas nas últimas palavras dos versos, ainda sonham com um mundo apolíneo, não pela ordem e pela perfeição, as rimas toantes são imperfeitas, mas um mundo em que o diálogo prevaleça – as rimas toantes são a figurativização do diálogo no poema, pois em sua diferença, harmonizam. E já nos ensinou Walter Benjamin, em A crítica da violência que onde há entendimento, não há crueldade. As rimas toantes, neste poema, mostram que a diferença é também o laço, o lastro que reitera que tudo vai dar certo, são por assim dizer, o próprio entendimento.

Nas quatro seções do livro, a saber, língua, pandemonium, mentis, loci a sensibilidade provoca fraturas e suturas, um mergulho sob as ondas imensas do insondável, da crueza e da vileza, mas também do amor, e esse me parece um aspecto que merece ser elucidados, já que a crítica – bastante volumosa, para um livro que acaba de nascer – vem  apontando outras praias para a leitura. Vou, portanto, neste exíguo espaço da coluna, ater-me a um poema em que esse tema salta aos olhos.

 

Rimas pobres

Dar
o que ninguém quer

Querer
o que não se pode dar

Amar
doa a quem doer

 

A pobreza das rimas reverbera no jogo de contradições entre as estrofes, não por acaso, dísticos.  É assim que o sujeito lírico articula o grande desencontro do amor, pelo encontro dos versos, pela valsa dos versos. Uma equação, a do amor, para a qual não há solução a não ser amar, a despeito de tudo, “doa a quem doer”. De algum modo, e extrapolando os sentidos para além do poema, ou seja, refletindo a partir do que ele convida a fazer, a poesia talvez coubesse nessas “rimas pobres”, de certo modo ela é o que ninguém quer, como acesso ao sentido e não como sentido em si, não oferece pausas ou refrescos, é um ponto de impossível ao mesmo tempo que abre tantas possibilidades. Em um mundo cinza, agreste, de tanta incompreensão, o enigma é a poesia em si, sua força, seu poder de revolver entranhas, mudar o curso das marés, doa a quem doer.

DIANA JUNKES é poeta, crítica literária e professora da UFSCar. Escreve mensalmente a coluna “Musa militante”.


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