sábado, julho 08, 2017

Poesia na era da distração





Em livro, Antonio Cicero resgata debate sobre a relevância da poesia

RODRIGO GARCIA LOPES
ESPECIAL PARA A FOLHA

     “A Poesia e a Crítica” reúne 13 ensaios do poeta, letrista e filósofo Antonio Cicero. O primeiro aborda, em tom de testemunho, sua relação problemática com a contracultura e a importância de suas conversas com Caetano Veloso para sua formação intelectual. Sete são dedicados à análise da obra de autores como Hölderlin, Thomas Mann, Fernando Pessoa e os brasileiros Ferreira Gullar (2), Armando Freitas Filho e Drummond. 
   Os ensaios mais interessantes são aqueles que discutem a poesia em nossos dias, o caso da letra de música e a relação da poesia com a filosofia. Há espaço para a complexa questão do cânone poético, espécie de ranking dos melhores poetas de todos os tempos.
     Em “Poesia e Preguiça”, texto que parece dialogar com a teoria do inutensílio, de Paulo Leminski, Cicero situa a poesia em nosso mundo saturado de informações e distrações, onde “tempo livre” virou artigo de luxo. 
    O poeta resgata o sentido positivo e libertário que a palavra “ócio” tinha para os antigos (negócio vem de “nec otium”, ou seja, não-ócio). A poesia nos abre a possibilidade de experimentar um tempo não utilitário, de ir além do uso pragmático da linguagem — o que domina nossas vidas. Paradoxalmente, a mesma “preguiça receptiva” fundamental para a gestação e produção de um poema é fatal para o leitor hiperpassivo. 
     Para Cicero o verdadeiro poema, onde forma e conteúdo estão em perfeita simbiose, mobiliza leitor e autor por inteiro: inteligência, emoção, sensibilidade, memória, cultura, intuição etc. Como argumenta no ensaio seguinte: 
     “Para fruir um poema é preciso nele imergir. E como a imersão não combina com a temporalidade acelerada do presente, muitos afirmam que a poesia simplesmente não tem mais lugar neste mundo. Pois bem, é exatamente por não se ajustar à temporalidade acelerada do presente que a poesia é necessária hoje”.
    “Sobre as letras de canções” revisita a velha polêmica sobre se letra de música é poesia, questão aparentemente resolvida com a canonização de Bob Dylan, Prêmio Nobel de Literatura. Sem deixar de explicar que o poema é uma estrutura autônoma, enquanto a letra é sempre parte de um conjunto maior, Cicero afirma ser mais pertinente perguntar se “a letra de música pode ser um bom poema”. Ele relembra que os poemas líricos da Grécia Antiga e dos trovadores provençais, hoje exemplos canonizados de poesia, eram letras de música. Atualizando e aproximando a discussão para nós, menciona “Letra Só”, que reúne as letras de Caetano, como exemplo de “um grande livro de poemas”.
      O importante é que, com este livro, Antonio Cicero segue uma tradição de poetas-críticos que refletem sobre seu ofício e a relevância da poesia (seu caráter de arte, não de passatempo e entretenimento). Coisa rara hoje em dia, quando o poema costuma aparecer “disfarçado” na forma de prosa empilhada em linhas, numa cena literária onde sobra pose e falta, muitas vezes, poesia.


RODRIGO GARCIA LOPES é poeta e tradutor, autor de “Experiências Extraordinárias” e “O Trovador” (romance policial), entre outros.

A POESIA E A CRÍTICA
AUTOR Antonio Cícero
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 44,90 (236 págs.)
AVALIAÇÃO bom ★★★ 

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