10.1.2014: Resenha de Estúdio Realidade (7 Letras) no Valor Econômico:
A natureza da linguagem em Garcia Lopes
Por Heitor Ferraz | Para o Valor
Não deixa de ser interessante que um dos temas caros ao romantismo - o da contemplação da natureza e a fusão do eu lírico com toda essa verdura estilizada - continue tendo, nos tempos de hoje, o mesmo apelo. No entanto, não podemos nos apegar à superfície dos poemas, e cabe perceber que essa natureza contemporânea já nos chega problematizada pela própria linguagem: é uma natureza inventada pela linguagem e ao mesmo tempo questionada por ela e sobre ela. É como se o poeta retirasse de suas observações uma imagem e, num segundo seguinte, já questionasse a validade dessa imagem.
A questão é complexa, não há dúvida. Mas ela está presente no recente livro "Estúdio Realidade", do poeta paranaense Rodrigo Garcia Lopes, uma das vozes representativas da poesia brasileira surgida nos anos 1990. Há em Garcia Lopes desde o princípio, em "Solarium", de 1994, uma preocupação com a diversidade formal. Mas já absorvida pela ideia da "poesia pós-utópica", de Haroldo de Campos, com "a pluralização das poéticas possíveis". Havia uma procura da expressão que desse conta dos embaralhamentos da vida contemporânea. Nesse sentido, sua poesia trilhou o inusitado caminho da variação formal e da polifonia, cada poema exigindo uma maneira própria de se apresentar na página.
Mas se há um tema bastante recorrente em sua poesia é o da natureza, como motivo de reflexão e criação de novas imagens e questionamentos. Como já havia em "Nômada", de 2004, essa paisagem descrita pelo poeta é uma espécie de fruto do pensamento (como ele mesmo diz num dos "24 aforismos sobre poesia", no fim de seu novo livro: "Talvez poemas devessem ser mais que simplesmente escrita sobre experiência, e sim escrita como experiência"). Essa tem sido a sua procura obsessiva: uma expressão que case imagem e pensamento, por meio de uma linguagem que se questione o tempo inteiro, pois ciente de seus desgastes. Como já dizia a crítica Maria Esther Maciel, o poeta "faz do deserto a sua paisagem".
Ele não procura a natureza em si, mas os seus ecos, pois em seu estúdio a realidade não é um objeto a ser flagrado diretamente. Ele deve ser captado pelas bordas, pelas imagens que proporciona, como se pode ler em "No Estúdio Realidade", que abre o livro: "Uma relâmpago é flagrado por seus ecos. Santo súbito". Em outro fragmento lê-se: "A pedra comunica seu sonho de estar sobre o ar da paisagem na parede. O espelho, uma perda".
Em "Notícias do Mundo", por exemplo, os versos parecem relatos curtos, quase títulos estilizados de jornais ("Águas muezins no vale das sombras/ África agoniza/ Iraque se debate/ Índia se indigna/ Impérios definham/ Morro em guerra fratricida" etc.). A certa altura, o poeta anota, irritado: "Mentiras, mentiras". E ao fim, diz: "E, no entanto, eu aqui/ à sombra de um pensamento/ de um amor que seja um lugar,/ um lugar como um pensamento./ Mas isto é ir muito longe:/ Isto é acordar".
"Estúdio Realidade", cujo título é tomado de um romance de William Burroughs, é um bonito livro, mas exige do leitor uma paciência de detetive (alguns poemas tratam diretamente do assunto). Ele lança pistas e despistes. Cabe ao leitor decifrá-los, não diretamente, mas pelos ecos que criam.
"Estúdio Realidade"
Rodrigo Garcia Lopes 7Letras 136 págs., R$ 35,00 / AA+
AAA Excepcional / AA+ Alta qualidade / BBB Acima da média / BB+ Moderado / CCC Baixa qualidade / C Alto risco
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