A natureza
da linguagem em Garcia Lopes
Por Heitor Ferraz | Para o Valor
Não deixa de ser interessante que um
dos temas caros ao romantismo - o da contemplação da natureza e a fusão do eu
lírico com toda essa verdura estilizada - continue tendo, nos tempos de hoje, o
mesmo apelo. No entanto, não podemos nos apegar à superfície dos poemas, e cabe
perceber que essa natureza contemporânea já nos chega problematizada pela
própria linguagem: é uma natureza inventada pela linguagem e ao mesmo tempo
questionada por ela e sobre ela. É como se o poeta retirasse de suas
observações uma imagem e, num segundo seguinte, já questionasse a validade
dessa imagem.
A questão é complexa, não há dúvida.
Mas ela está presente no recente livro "Estúdio Realidade", do poeta
paranaense Rodrigo Garcia Lopes, uma das vozes representativas da poesia
brasileira surgida nos anos 1990. Há em Garcia Lopes desde o princípio, em
"Solarium", de 1994, uma preocupação com a diversidade formal. Mas já
absorvida pela ideia da "poesia pós-utópica", de Haroldo de Campos,
com "a pluralização das poéticas possíveis". Havia uma procura da
expressão que desse conta dos embaralhamentos da vida contemporânea. Nesse
sentido, sua poesia trilhou o inusitado caminho da variação formal e da
polifonia, cada poema exigindo uma maneira própria de se apresentar na página.
Mas se há um tema bastante
recorrente em sua poesia é o da natureza, como motivo de reflexão e criação de
novas imagens e questionamentos. Como já havia em "Nômada", de 2004,
essa paisagem descrita pelo poeta é uma espécie de fruto do pensamento (como
ele mesmo diz num dos "24 aforismos sobre poesia", no fim de seu novo
livro: "Talvez poemas devessem ser mais que simplesmente escrita sobre
experiência, e sim escrita como experiência"). Essa tem sido a sua procura
obsessiva: uma expressão que case imagem e pensamento, por meio de uma
linguagem que se questione o tempo inteiro, pois ciente de seus desgastes. Como
já dizia a crítica Maria Esther Maciel, o poeta "faz do deserto a sua
paisagem".
Ele não procura a natureza em si,
mas os seus ecos, pois em seu estúdio a realidade não é um objeto a ser
flagrado diretamente. Ele deve ser captado pelas bordas, pelas imagens que
proporciona, como se pode ler em "No Estúdio Realidade", que abre o
livro: "Uma relâmpago é flagrado por seus ecos. Santo súbito". Em
outro fragmento lê-se: "A pedra comunica seu sonho de estar sobre o ar da
paisagem na parede. O espelho, uma perda".
Em "Notícias do Mundo",
por exemplo, os versos parecem relatos curtos, quase títulos estilizados de
jornais ("Águas muezins no vale das sombras/ África agoniza/ Iraque se
debate/ Índia se indigna/ Impérios definham/ Morro em guerra fratricida"
etc.). A certa altura, o poeta anota, irritado: "Mentiras, mentiras".
E ao fim, diz: "E, no entanto, eu aqui/ à sombra de um pensamento/ de um
amor que seja um lugar,/ um lugar como um pensamento./ Mas isto é ir muito
longe:/ Isto é acordar".
"Estúdio Realidade", cujo
título é tomado de um romance de William Burroughs, é um bonito livro, mas
exige do leitor uma paciência de detetive (alguns poemas tratam diretamente do
assunto). Ele lança pistas e despistes. Cabe ao leitor decifrá-los, não
diretamente, mas pelos ecos que criam.
"Estúdio Realidade"
Rodrigo Garcia Lopes 7Letras 136
págs., R$ 35,00 / AA+
AAA Excepcional / AA+ Alta qualidade
/ BBB Acima da média / BB+ Moderado / CCC Baixa qualidade / C Alto risco
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