Este poema foi escrito em Londres, quando vivi lá, no século passado (1984 e 85, para ser exato), no bairro Shepherd's Bush, e no filme Disque M Para Matar, do Hitchcock, cineasta que adoro. De tarde e começo da noite trabalhava como ilegal (ajudante de cozinha e lixeiro) num restaurante francês do lado da Ópera, em Covent Garden. E de noite ficava bebendo uísque, conversando com meus colegas de apê e escrevendo. Bons tempos. Tudo parecia um filme. O poema tem um clima de história de detetive e um tom de urgência que gosto muito. Para quem não conhece, saiu no livro Solarium (editora Iluminuras, em 1994). Divirtam-se:
“M”
1
Improvisação pessoal.
Essa noite sou um jazzman
com dentes de ouro & swing
pra raiar o dia.
Troco a mobília de dentro, só,
pra ver como ficamos.
Táxis negros dão rasantes
sobre suicidas.
Sou apenas um fantasma clandestino
procurando o que beber
nessa noite fria.
Amo a lua, submisso,
embrulhado num lençol chinês.
Spyder-man tecendo
essa novela de personagens
tão confusas.
Desarrumo tudo.
Paciente,
espero os ilustres convidados que, eu sei,
não vão chegar.
2
Descendo pels escadas de emergência
do maior edifício do mundo.
Escuro.
A idiota que eu amo está lá em cima,
dormindo, suando frio,
morrendo um pouco. Pego o fone.
O silêncio com seu cínico sorriso.
Não importa: minhas mãos
negras, negras,
tremem como coelhos.
Digo: “É mesmo impossível sentir frio
Com esses cobertores alemães”.
Kris quebrou a perna,
o indiano da quitanda teve um filho
o resto são arrependimentos
terríveis de serem sentidos”.
(Mas me amarro nos mastros
de alguém que é um naufrágio.
Destroços de ondas que a corrente leva,
Orgulhosa).
3
Misteriosas vozes escapam
do esgoto.
Bêbados brigam por uísque.
Ratos fogem, nojo.
Um rádio toca Vivaldi.
O casal ao lado espanca-se,
em silêncio.
Tomado pelo pânico
tropeço em gatos amarelos
perdido em minha própria obsessão.
4
Ouço passos apressados
A mil degraus.
Vem subindo alguém,
Como uma febre, alguém que se quer muito.
A Loucura arromba a porta.
Revira os olhos. Vasculha a sala.
Vidraças, aos gritos, se atiram lá de cima.
Com um canivete enterrado nas costas
Ainda disco o último número.
Rodrigo Garcia Lopes
De Solarium (Iluminuras, 1994)